Mais umas memórias carregadas aqui para o Malfadado. Uma das coisas que aqui nunca referi foi o Peru do Natal, tradição da casa paterna e materna que me parece que nasceu em Setúbal, não seria tradição de avós. Esta reflexão, o seu tema, foi inspirado por algumas fotos que recuperei aqui da época do Natal de 2020. Nelas se podem ver os artesãos dos muitos perus sacrificados ao longo dos anos, guardo ainda na memória um deles criado no galinheiro da casa do Outão, que foi embebedado pela manhã, para depois ser degolado. Vamos então às fotos, antes de falar deste Natal de 2023...
Os meus pais, Rogélio e Maria Amélia, na nossa casa em Coimbra. A minha mãe ainda conseguiu arranjar forças para ajudar o que pode neste ano, e aqui está o meu pai, que foi sempre o responsável por dar o banho ao perú (salmoura com citrinos), por depois barrá-lo (com especiarias e gordura) e por colocá-lo no forno a gás na manhã do dia 25, logo pela manhãzinha. Está aqui na foto com o seu avental especial de Natal, vê-se que foi com esforço redobrado e pouca alegria que desta vez tratou do peru. A assadura era responsabilidade do meu pai, que tinha que virar o bicho, virar o tabuleiro, regar com o molho, ver a temperatura perto do osso. A minha mãe tratava do recheio do peru, à base de salsichas frescas, azeitonas, etc.
Aqui nesta foto auto-retrato ao lado da minha mãe, já bastante combalida e vencida, aparece o meu irmão mais novo, cuja dedicação à melhoria e inovação na busca de um recheio perfeito para o peru de Natal todos conhecemos.
Nesta foto vê-se bem a cozinha que viu assar dezenas de perus, foi já depois do Natal, a minha mãe já estava acamada, mas estão dois dos irmãos e o meu pai a recompor-se de uns dias mais difíceis.
E nesta apareço eu ao lado do fogão e forno, eu que nunca ajudei em nada nisto dos perus, apenas me dedico a provar e ajudar a comparar de um ano para o outro, depois de durante alguns anos nem sequer comer carne. E em primeiro plano o meu pai a tomar comprimidos.
Chegamos então ao peru de 2023. Foi em casa da minha sobrinha que se trinchou, mas foi um peru que viajou de um forno a lenha situado em Cadima, o assador foi o Valter, companheiro da minha sobrinha. O recheio foi da autoria da minha irmã, vindo de Canas de Senhorim, mas teve o apoio na confecção do meu irmão mais novo, em directo da Suiça. Estava bom o peru, e o recheio, sim senhor, tudo aprovado. Eu comi pouco porque ando com pouca energia e não queria abusar do meu recheio. Acompanhei com um belo arroz de frutos secos, muita salada e nada de molho. Ah, e puré de maçã.
Depois comi duas sobremesas, muito bolo da tradição (açoreana, pois, lá a incorporámos nas nossas tradições desde há muitos anos, mas não tantos como o peru, nem nada que se pareça) e uma mousse de chocolate de after eight.
Mas não é que mesmo com tantos cuidados e moderação, acabei por não conseguir digerir o almoço. É que um par de dias antes fui participar num pequeno convívio de Natal, e fui de boleia com um amigo que tinha saído de um género de gastroenterite, mas já estava curado e lá fomos e viemos. Até ao almoço estava bem, com apetite e tudo, mas depois comecei a sentir-me enjoado, digestão parada, só arrotava, e sempre com o aroma da menta fresca e forte. Não imaginava que nos dias seguintes teria que andar a recuperar de mais uma mazela. Não foi muito forte, mas lá me deitou um bocado abaixo. Enfim, pior sorte teve o peru, que depois de uma vida triste teve uma morte nada alegre. Pode ser que algum dos meus sobrinhos netos algum dia se dedique a criar uns perus ao ar livre, se a tradição do peru acaso perdurar. Pela mãe deles, a minha sobrinha, a tradição desaparece num ápice, pois é das vegetarianas.