Saiu ontem no Público o texto que copiei e que colo aqui, pela sua relevância. Isto é ciência, não é opinião, por isso prestem atenção:
Pandemias e predadores – lição
de Jorge Paiva
Quando esta pandemia atingir (porque vai mesmo atingir) as populações das favelas americanas, africanas e asiáticas, não vão conseguir controlá-la. Será o caos da humanidade, tanto para pobres como para ricos, pois a morte não se compra.
2 de Abril de 2020, 12:14
Não vamos referir a relevância de todos os predadores, mas apenas de dois. Um, macroscópico e muito conhecido, o lobo, e outro, mais ou menos microscópico e absolutamente desconhecido da generalidade do público, os mixomicetes.
Como qualquer predador, o lobo sempre foi vilipendiado e inimizado pelos humanos, que o abatem indiscriminadamente, colocando-o na situação de risco de extinção. Como qualquer outro predador, os lobos são extremamente úteis para o equilíbrio da biodiversidade e dos ecossistemas naturais, que existem no Globo Terrestre, a Gaiola onde vivemos, antes do aparecimento da espécie humana, o animal mais perigoso desta Ilha do Universo.
No início do século passado, foi decidido eliminar os lobos do Parque de Yellowstone, o primeiro Parque Nacional dos Estados Unidos. Isto porque os lobos não só competiam com os caçadores desportivos que se “divertiam” a caçar veados e outros mamíferos que existiam nas áreas limítrofes do parque, como também porque, por vezes, os lobos se aproveitavam dos descuidos dos criadores do gado que pastava nas cercanias do Parque Nacional. Assim, a partir de 1930, deixaram de existir lobos no Parque de Yellowstone.
Então, a população de herbívoros, particularmente de alces, aumentou exponencialmente, de tal modo que os ecossistemas do parque sofreram uma drástica modificação, particularmente os prados das margens dos rios, que foram praticamente dizimados. Essa erosão não só diminuiu a biodiversidade desses ecossistemas marginais, como também a população de castores, sem o predador (lobo) aumentou de tal modo, que derrubou as árvores e arbustos da floresta ripícola que marginava o rio.
Com as margens dos rios desertificadas, a erosão progrediu rapidamente, com arrastamento de solos nas cheias sazonais, levando ao assoreamento dos rios, que passaram a serpentear por áreas do parque onde nunca tinham corrido, provocando, além da erosão, alterações profundas nos ecossistemas do parque.
Depois disto, os lobos foram reintroduzidos, os herbívoros deixaram de pastar nas margens dos rios por estarem a descoberto e mais facilmente visualizados pelos lobos, voltando a alimentarem-se abrigados na floresta, que estava transformada num ecossistema desequilibrado, onde até os ursos tinham já poucos frutos, porque as plantas tinham crescido demasiadamente ramificadas e, portanto, com poucos frutos. Os ecossistemas das margens e da floresta voltaram ao equilíbrio normal, os rios passaram ao leito primitivo, sem inundações nem assoreamento drástico. Enfim, o Parque Yellowstone recuperou do desastre para que caminhava.
Como a perda de biodiversidade tem impacto nos surtos de doenças infecciosas
Em Portugal, os lobos foram quase aniquilados. Eu ainda conheci lobos na serra da Estrela. Assim, os javalis proliferaram de tal modo que, em 1996, foi atropelado um próximo da entrada principal do Hospital da Universidade de Coimbra; no dia 9 de Janeiro de 2018, de madrugada, vi uma fêmea de javali descendo a rua onde moro (R. Carolina Michaëllis), em Coimbra, e no dia 18 de Agosto de 2017, alguns javalis banharam-se na praia de Galapinhos (Setúbal); além dos prejuízos que causam nos campos agrícolas. Nós, em vez de procedermos de modo idêntico ao acontecido no Yellowstone, resolvemos a questão aos tiros, permitindo a caça temporária aos javalis.
Vamos, agora aos mixomicetes, que não são animais e, como não são produtores de biomassa (não são verdes), também não são plantas. São eucariotas, portanto, não são bactérias nem vírus. Reproduzem-se por esporos, mas não são plantas, pois não são produtores de biomassa. Constituem um subfilo, os Mycetozoa, com cerca de 1000 espécies. São seres microscópicos, plasmodiais, que se deslocam como as amebas, alimentam-se de microrganismos, como bactérias (provavelmente também de vírus), leveduras e fungos. As florestas são dos ecossistemas onde são mais abundantes, quer na manta morta, quer na superfície das plantas.
Costumo mostrá-los aos jovens quando vou às escolas na minha actividade cívica ambiental. Mostro-os na casca das árvores das florestas tropicais. Nestas florestas, as árvores atingem 120 metros de altura. Chamo à atenção dos alunos que uma árvore dessas tem, na casca, milhares de mixomicetes. Quando se deita abaixo uma árvore dessas, estamos a matar também milhares de predadores de microrganismos. E quando, além disso, destruímos também o ecossistema florestal, estamos a libertar milhões de bactérias e vírus que podem provocar novas doenças, como, por exemplo aconteceu com a designada sida, que não existia quando eu era jovem e que surgiu na região florestal do Congo. Nessa altura culparam-se os símios, espalhando que o vírus (HIV) tinha passado para a nossa espécie através do contacto com símios dessa região. Poderá ter sido assim, mas o vírus estava no corpo dos símios, depois de se ter disseminado por falta dos predadores (mixomicetes), que despareceram com o derrube da floresta tropical da região. Também já houve quem culpasse animais selvagens desta epidemia que nos assola agora. Na China há um grande mercado de animais selvagens para a alimentação e misticismo. A explicação é, pois, a mesma e o único culpado é o Homo sapeins L., que parece não ter nada de sapiens.
Neste momento, há apenas 20% das florestas que existiam quando a nossa espécie surgiu neste Globo, uma Gaiola que temos vindo a sujar e na qual temos vindo a dizimar predadores de microrganismos, que podem vir a ser agentes de novas enfermidades letais e que não vamos poder controlar com tirinhos como fizemos com os javalis, pois os microrganismos não se vêem para os podermos dizimar a tiro.
De realçar que esta pandemia alastrou mais rapidamente e tem sido mais letal nas regiões do Globo mais poluídas e de maior concentração populacional (China e Norte da Itália).
Estou imensamente apreensivo, pois quando esta pandemia atingir (porque vai mesmo atingir) as populações de todas as favelas americanas, africanas e asiáticas, não vão conseguir controlá-la. Será o caos da humanidade, tanto para pobres como para ricos, pois a morte não se compra. É por isso que me incomodo com empresários e políticos mais preocupados com os problemas económico-financeiros do que com o gravíssimo e rapidíssimo alastramento do coronavírus, julgando que eles não serão atingidos. Apesar desta lição, que ainda não acabou, continuo a ouvir justificar que o aeroporto terá que ser no Montijo, por ser o local economicamente mais favorável, sem olhar, minimamente, para as consequências ambientais e para o próximo desastre que aí vem, bem pior do que este, como alertou o filósofo José Gil: “Esta terrível experiência que estamos a viver constitui apenas uma antecipação, e um aviso, do que nos espera com as alterações climáticas.”
Texto retirado da edição do jornal Público, escrito pelo extraordinário botânico e ecologista Jorge Paiva
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