domingo, janeiro 24, 2021

MUDAR DE VIDA - O YOUTUBE DO MEU PAI - JOSÉ MÁRIO BRANCO - ACORDAR O PENSAMENTO


Volta ao Malfadado o Mudar de Vida. Acho que depois da partida do José Mário Branco não fiz aqui a merecida homenagem póstuma. Na verdade não considero essenciais as coisas póstumas...

O meu pai tem uma lista de reproduções do youtube com muita música clássica, mas também outras coisas musicais que foi pescando aqui e ali. Estava ele a mostrar-me esta sua colecção quando apareceu esta versão curta desta música fundamental, que deu origem ao documentário emocionante que vi na íntegra há uns anos atrás, sobre a vida do José Mário Branco. Mais do que um compositor, o José Mário Branco está no mesmo patamar intelectual e até filosófico do José Saramago. Grande observador da sociedade, grande inventor de muitas poesias e textos.

Pesquisando na net descobri a letra integral desta obra musical (link aqui), que fala do mudar de vida de forma sentida e analisando a sociedade. Retirado de um arquivo elaborado e mantido pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa (link aqui para os mais curiosos e desconhecedores). Nesta versão reduzida a letra foi cortada, pois claro, e para apreciar o texto cantado o utilizado do Youtube colocou legendas, mas em versão tradução automática, com coisas que não fazem sentido. Por isso não liguem as legendas do youtube e vejam, leiam, sigam aqui a letra (coloquei entre parêntesis partes do texto que fazem sentido, e eliminei pelo meio muito do texto que não aparece nesta versão curta):


Hesitei

Se havia de escrever esta canção

Porque a vida não se pode resumir numa canção

Mudar de vida…

Mudar de vida é uma questão

qu’inda não está resolvida

Aliás, para quê mudar de vida?

Estará assim tão mal a minha vida?

Mas o que é a minha vida

senão a própria vida

que está contida

em toda a força perdida

em toda a vida perdida

consumida

passada, repassada, ultrapassada

como se não fosse vida?

A minha vida – não há

Uma vida mesmo vida

só pode ser um espaço

que está dentro de um abraço

que se dá ou não se dá

Vida verdadeiramente

é sempre a vida da gente

que penosamente

insistentemente

inexplicavelmente

vai fazendo andar a roda

que fabrica a vida toda



Uma vida separada

se parada

se vida seca e mais nada

se for vida distraída

alienada

sozinha, irrelevante, e auto-ignorada

já não é vida vivida

Uma vida separada

não é vida nem é nada

São corpos minerais

nem plantas nem animais

Pois quem vive distraído

à conta do seu umbigo

quem não é capaz de dar a vida

pela vida de um amigo

está sozinho com os outros

e está sozinho consigo

… pelo menos, é assim que eu vejo as coisas…

Então,

mudar de vida p’ra quê?

Em tudo o que foi vivido

procuramos um sentido:

o que essa vida nos diz

uma matriz

um pendor

um sonho, um amor, um desamor, uma paixão uma razão

– ou uma grande razão!

Por baixo de cada vida

há essa roda que gira

com os ratinhos lá dentro

a fazer a roda andar

As coisas materiais

as coisas essenciais

o pão, a casa, os sinais

que são a vida directa

a existência concreta

As coisas que estão à mão

que nos parecem normais

- a paz, o pão, a saúuude, a habitação -

Então:

Mudar de vida? 


— (CORO) Mudar de vida!




Mudar de vida

Mudar de vida, acordar 

Acordar o pensamento



Vida verdadeiramente

é sempre a vida da gente

que penosamente

insistentemente

inexplicavelmente

vai fazendo andar a roda

que fabrica a vida toda

Muitos de nós nem dão conta…

Achamos isso normal…



Mas afinal:

E a hora de trabalho que há em cada coisinha? E o cansaço da mãe co’as panelas na cozinha? Como se chama a Judite que me fez esta camisa? Onde está o Eduardo que fez este projector? E onde pára o Vladimir que ergueu aquela parede?

Estão não sei onde

Do outro lado daquilo a que nós chamamos vida

A vida deles

para nós não é bem vida ...

é – digamos assim – mercadoria produzida São umas “coisas”…

Umas coisas que vivem… sei lá onde, sei lá como… 

Viverão?

Essa gente

- tirando alguma excepção -

não está confortavelmente

aqui sentada à minha frente

a ouvir a minha canção

Vai vendo telenovelas

Olhos perdidos no espaço

A digerir o cansaço

A descansar do vazio

São corpos esgotados

destinados

a serem recarregados

que amanhã é outro dia

em que vão trocar por pão, ou tudo, ou nada

mais e mais mercadoria

fabricada, montada, embalada e transportada

que p’ra eles não vale nada.



Estes de que falo são 66% da gente do meu país. Há mais 24% que sobrevivem nas pregas do pesadelo.

Sobram 10... 

Dos dez por cento, são oito

os que duma ou doutra forma

levam cheios de arrogância

as migalhas do biscoito

que são o seu resgate da esperança

- que estão nas tintas pra tudo, a começar por si próprios

Ficam os tais dois por cento

os que a gente nunca vê

mas que nos vêem a todos

Quem fabrica um parafuso

uns sapatos, uma estrada

qualquer coisa fabricada

recebe um xis pela hora

pelo gesto, pela vida emprestada

que não é vida nem nada

Amortizado o capital constante

pagas as despesas todas

incluindo o esperto que teve a ideia

fica então a mais-valia

que é a demasia

entre o valor da mercadoria

e os gastos do patrão

o esperto que teve a ideia

o empreendedor

que pôs os outros a viver p’ra ele

Porquê?

Porque os valores são outros

- Quais são os teus valores, Zé Luís?

- Os meus valores?

- Sim, quais são os teus valores?

- Bem… o Amor? a Liberdade, a Igualdade, a Fraternidade? a Amizade? …

 a Justiça, ora aí está, a justiça .

– ah, e também a Honestidade

- E tu, aí, quais são os teus valores?

- Os meus valores?

- Sim, quais são os teus valores?

- Os meus valores estão na Bolsa de Valores

Ao qu’isto chegou!

(A minha vida p’ra isto?

é o que tendes p’ra me dar?

é o que tendes para me obrigar? para me impor?

Mudar de vida !)

(...) (...)


(Antero! meu Mestre!

Convoco-te ao fazer desta

com esse teu sinal vermelho

mesmo no meio da testa

A Unidade que procuraste

a Utopia dos loucos…

Disseste um dia

a chorar de alegria

de esperança precoce e intranquila:

“Vós, poetas, que sois os loucos porque andais na frente!”

Utopias

temo-las todos os dias

realizamos umas tantas

a cada dia que passa )




Nos anos 20 do século do mesmo nome, para tentar deter o flagelo social da sífilis, que dizimava pobres e exércitos, o biólogo alemão Ehrlich fechou-se no laboratório.

Tentou uma experiência e falhou.

Tentou duas, falhou.

Três, quatro, cinco, seis – falhou sempre.

Até que conseguiu um tratamento – chamou-se “tratamento Ehrlich 606”.

Mas ainda não conseguia curar a doença sem matar o doente. Então Ehrlich continuou, mais uma, e outra, e outra. A cura, finalmente conseguida, chamou-se “Ehrlich 914”.

Quantas vezes já tentámos nós?

— novecentas e catorze? ainda não!

— seiscentas e seis? ainda não!

mas talvez… quem sabe

dez? vinte?

qual é o preço da esperança?




“Acordai!

Acordai! homens que dormis

a embalar a dor

dos silêncios vis

Vinde no clamor

das almas viris


arrancar a flor

que dorme na raiz!”

“Estamos de punhos fechados

mas temos as mãos nos bolsos”

Então:

Mudar de vida?


(Antero! meu Mestre!

Convoco-te ao fazer desta
com esse teu sinal vermelho
mesmo no meio da testa. 
Disseste um dia: )

“Não disputeis, curvado o corpo todo, as migalhas da mesa do banquete:

Erguei-vos! e tomai lugar à mesa…”

Mudar de vida?


MUDAR DE VIDA!!!

Levar o sonho de Antero

às mulheres do Vale do Ave

às da Zara, às da Maconde, às da Rohde

aos homens da Pereira da Costa

aos jovens da Cova da Moura, da Arrentela,

da Apelação e da Alta de Lisboa, meus irmãos.

aos homens da Autoeuropa e da Azambuja

ao milhão de desprezados,

ao lixo do capital

aos seres humanos dispensáveis,

descartáveis, recicláveis

a esses olhares perdidos

dos nossos telejornais.

Levar o sonho de Antero

aos humilhados e ofendidos.

“Erguei-vos! e tomai lugar à mesa…”

Libertar a mais-valia que está na mercadoria —

Mostrar a vida escondida por baixo do sofrimento

Acordar a força

Acordar a força motriz

A energia matriz de onde nasce o movimento

A raiz

Mudar de vida!


Mudar de vida? 


Mudar de vida

Mudar de vida, dar

Dar o pontapé na morte


Mudar de vida

Mudar de vida, romper

Romper o cordão da sorte



Mudar de vida

Mudar de vida, dar

Dar as mãos para o caminho


Mudar de vida

Mudar de vida, mudar 

Que isto não muda sozinho


Mudar de vida

Mudar de vida, pôr

Pôr em marcha o movimento


Mudar de vida

Mudar de vida, acordar

Acordar o pensamento


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