domingo, janeiro 24, 2021

IVAR E A MORTE

Dia 22 o meu amigo Ivar Corceiro partilhou um conto autobiográfico no seu Facebook, que agora faço meu. De forma abusiva, pois não lhe pedi autorização... sabendo que ele nem sequer vai saber, pois escreve muito bem e não é leitor do Malfadado. Nestes dias enlutados, em que nada posso dizer dos avôs que não conheci mas que ainda me viram em vida, este texto cai bem no meu diário. Eu já só tenho memória das avós, uma era a do açúcar amarelo comido às escondidas quando a íamos visitar, mal sabia eu que ela enchia sempre o pote plástico e o deixava ali à mão de semear. A outra é do lado materno, o lado que geneticamente ficou mais forte na minha maneira de ser, e foi a avó que me ensinou a cozinhar e que quando me via magrinho (depois de tratado com medicamentos para a obesidade infantil) comentava que me tinham queimado por dentro. Não andaria longe da verdade...
Fica então o conto do IVAR CORCEIRO:
"Foi o meu avô quem me apresentou a Morte. Muito antes de morrer, diga-se de passagem. Estávamos sentados num banco de jardim. À nossa frente só um lago com patos e cisnes a quem eu dava pedaços de pão duro que ele guardava religiosamente em sacos de plástico para os nossos pequenos passeios de férias ou de fim de semana. A água do lago era amarela esverdeada e mais parecia saída dum esgoto qualquer, mas tanto os patos como os cisnes pareciam felizes ali. Eu ia atirando os pedaços de pão para locais diferentes para que todas as aves conseguissem comer pelo menos uma vez, ele ia olhando para o relógio de bolso que mais parecia ser um prolongamento do seu corpo do que um objecto externo. Às vezes alguns pardais perdiam o medo e aproximavam-se também para tentar a sorte. As árvores segredavam entre elas coisas da vida num silêncio que os meus quatro ou cinco anos de idade ainda não me permitiam perceber. O meu avô alternava a leitura metódica das horas com as cócegas que fazia ao planeta com a ponta da sua bengala de madeira. Quando o pão acabou os patos e os cisnes desinteressaram-se e voltaram para a sua vida despreocupada no lago sujo. Os pardais aproveitaram para devorar as últimas e mais pequenas migalhas que tinham ficado espalhadas pelo chão. Sentei-me ao lado do meu avô e vi os desenhos que ele tinha feito no chão de terra do jardim. Eram círculos perfeitos sem aparente motivo ou mensagem. A mão esquerda dele tremia sem parar e a direita é que fazia esses desenhos e ia tirando e devolvendo o relógio ao bolso. Foi num desses momentos que interrompi o pesado silêncio do mundo. Avô! O teu relógio é antigo mas ainda trabalha bem. Não sei bem o que é que ele entendeu da minha frase que, na verdade, não era mais do que uma inocente observação duma criança. Talvez tenha feito uma análise ao seu próprio corpo. Talvez não. Quando eu morrer é para ti! - disse. Com a resposta do meu avô a Morte sentou-se ao nosso lado, no mesmo banco. Eu fiquei no meio e ela à minha esquerda. Silenciosa. Até esse momento, na minha mente de criança o meu avô era velho mas ia ser sempre velho. Sem nunca morrer. Depois desse momento ia morrer num dia qualquer. Os meus olhos transformaram-se em cascatas tristes e alguns dos pequenos pardais esvoaçaram assustados. Lembro-me que a luz do Sol dançava na superfície suja da água. Fingia-se distraída do quase fim do mundo que acabara de acontecer e que só foi interrompido pela astúcia do pai do meu pai. Mas ainda falta muito! E olha que vale a pena andar aqui. E então a Morte levantou-se e foi passear por aí, os meus olhos secaram e os pardais voltaram às migalhas. Nesse dia não a tornei a ver. O meu avô mentiu-me. Não faltava muito. Quem me acabou por dizer a verdade foi a velocidade vertiginosa da Vida, que esta semana me levou o meu Pai. O meu Pai nunca me levava ao parque mas levava-me ao café depois do jantar, onde me permitia sempre beber um Sumol de laranja enquanto ele fumava as amarguras duma vida em cigarros intermináveis e lia vários jornais da primeira à última palavra. Percebi com esse tempo que nunca pára que a vida nunca lhe foi fácil e que tudo o que conseguiu ter e viver foi sempre às custas dele mesmo. Melhor ou pior, fez também todos os esforços para que a minha vida fosse mais fácil do que a dele. E foi. E é. Esta semana a Morte voltou a visitar-me e levou-o. A pandemia e a proibição dos voos entre o Reino Unido não me deixaram despedir-me, mas lembrei-me desta frase que o meu avô me disse em criança: “E olha que vale a pena andar aqui”. E valeu. E vale. Para além das recordações com que ficamos é isso que um pai nos deixa sempre. Valer a pena andar aqui. Fiquem bem. Todos vocês. Façam com que tudo valha a pena."

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