domingo, março 24, 2024

A BOA ENERGIA DE UM CÃO RURAL - CRÓNICA LITERÁRIA 1

 Quando se deixa de poder andar acelerado a fazer e refazer, a tratar de mil e uma coisas, fica-se mais dado à observação. Ganha-se um enigmático poder de ver as coisas que toda a gente poderia ver, poder tanto mais poderoso quanto melhores forem as ligações neuronais de cada cabeça. É assim aquele revolucionário de aldeia rural, que viveu a revolução de Abril na sua juventude contestatária passada num meio urbano. Longe dos pais, perto da observação directa dos movimentos estudantis e operários. Um problema nas articulações das pernas revolucionou a sua vida, e teve que deixar de fazer a sua agricultura de contra-cultura, ela própria já muito respeitadora da observação do funcionamento das ecologias. Começou a olhar mais e a fazer só dentro das medidas do seu possível.


Não passou a ser cientista, porque os cientistas de hoje são os que seguem essa profissão. Mas não podemos fugir a esta realidade: a observação é o princípio de toda a descoberta científica. A constatação e a explicação dos fenómenos, ou a proposta de coisas práticas para resolver problemas, a isto se dedicam agora os cientistas de profissão. Deixando os cientistas da mera observação na classe dos curiosos ou dos amadores. O revolucionário de aldeia, o rural, não escaparia a esta regra.

É quase um lugar comum dizer-se que a ciência está muito avançada, mas há ainda tanta coisa que podemos enumerar a precisar de mais e mais tempo de ver a natureza. Por exemplo, a medicina, a evolução das espécies, a ecologia, a saúde e até a produção de energia de forma verdadeiramente sustentável. Sobre todas as áreas pode um cientista amador evoluir.


No dia em que o nosso revolucionário agricultor ao ralenti começou a observar melhor o comportamento animal, perdendo o seu tempo nos passeios mais longos com os seus cães, foi brindado com algumas cenas inexplicadas. Neste ponto há que referir aqui duas ou três que lhe deixaram o cérebro muito mais baralhado, e curioso. Ele já tinha ouvido falar de coisas da energia e das almas, ligados pelas pessoas à religião, a uma entidade superior, coisas remetidas para o campo do oculto. Os curandeiros, claro, mas também os casos das pessoas que à distância percepcionam situações limite experienciadas por outros que lhe são ligados de alguma forma. Mas nunca lhe passou pela cabeça ver, ele próprio, desocultar-se parte desse mundo.


Ao passear a sua pequena matilha, havia uma cena que se repetia. Um dos seus cães grandes, forma pesada e escura, também ele caminhando com dificuldade articular, era muito peculiar na forma como enfrentava cães mais mal dispostos. Ao passarem numa vivenda com cerca e portões grandes, uma cadela solitária de raça labrador, passava o focinho por entre os varões e ladrava, rosnava agressivamente na presença dos cães. Sempre que ali passeavam, o seu pesado cão ia lá direitinho e a cena repetia-se, focinhos da mesma estatura lado a lado, a cadela ainda dava uma dentada, mas apenas no ar, roçariam apenas suas vibrissas. Mas depois, sem se ver ou ouvir o cão mudar de atitude, a cadela recolhia o focinho para dentro do portão, sentava-se de forma encolhida, cabeça meio pendente, e ali ficava recolhida, até o grupo se afastar. Noutra situação, com o mesmo animal, o pobre bichano decide aproximar-se de um cão ainda maior, mas mais jovem, que vivia preso a uma corrente e ladrava furiosamente ao vê-lo aproximar-se, passos decididos, invadindo o seu quintal. O dono ainda avisou que poderia ser perigoso, não sabia como o seu canino de guarda poderia reagir. Mas da invasão do quintal, a caminhada desequilibrada passou à incursão no território e em segundos ficam lado a lado, há silêncio e um pequeno momento em que o cão aceita a situação inédita. Mas depois salta para cima do invasor, com fúria e morde-lhe na nuca, rosna agressivo e fica em dominância. Mas é só um instante, o cão pacificador estremece por baixo do outro, ouve-se um rosnar grave, quase definitivo, e o outro, que estaria a dominar, sai de cima e volta a ficar calado e calmo. Cheiram-se como é próprio da raça. Assim como se aproximou na sua passada característica, assim se afastou e voltou para junto do dono.


Muitas mais coisas revolucionárias eram dadas a ver ao nosso cientista de campo através dos seus animais e dos longos passeios sem tempo, sempre diferentes situações em que havia essa espécie de energia da comunicação. Do animal que sente a dor de outro animal gravemente ferido, saíndo em disparada e a ganir depois de se aproximar e quase se tocarem, passando pelo animal que se dá bem com todos os outros, mas que apesar do seu diminuto tamanho ataca violentamente e repetidamente apenas um outro, que é medroso, até ao cão de rua que começa a segui-lo, mas que não se deixa tocar.


Como é possível este tipo de comunicação? Como se pode medir esta energia, que certamente não tem nada a ver com a energia eléctrica que circula nos nossos neurónios? Pelo menos não com aquilo que a ciência explica nos nossos dias. Se já é difícil entrar no mundo microscópico das partículas, pois são coisas que os nossos sensores corporais não captam, mais difícil será investir na percepção do mundo dos átomos, constituintes de toda a matéria. E, sempre na direcção do mais difícil, a dimensão do sub-atómico é todo um mundo de teorias que vão sendo provadas ou repelidas por cientistas que a diferentes temas dedicam as suas horas.


Como fixado por Bill Bryson na sua obra de história da ciência “Breve História de Quase Tudo” acerca das intrigantes dimensões do sub-atómico, referindo-se ao Princípio de Exclusão, formulado em 1925, “determinados pares de partículas sub-atómicas, mesmo estando separadas pelas maiores distâncias, podem <saber> instantaneamente o que a outra está a fazer”. Esta teoria foi confirmada por uma experiência científica em 1997, com fotões emitidos em direcções opostas e a 10 Km de distância. Quando interferiam com uma dessas emissões, a outra reagia de imediato da mesma forma.


Neste mundo da ciência o agricultor não pretendia evoluir ou fazer carreira, mas as suas experiências que captou por acaso poderiam muito bem ser a base de um estudo teórico, que pudesse depois vir a ser provado cientificamente. A nossa interacção com o mundo natural é sempre muito limitada e raras vezes temos disponibilidade para reparar nas coisas. E muitas vezes confiamos demais nas soluções que são vendidas como as melhores, desenvolvidas pelos génios da ciência, quando basta olhar com atenção para o mundo à nossa volta, e para as relações entre as coisas todas, vivas e não vivas, para descobrir as receitas para questões complexas.


Uma das suas cadelinhas era um exemplo de boa convivência com todos os cães. Raça pequena, sem ser de raça apurada, era antes uma misturada de genes. Fossem cães absurdamente enormes, ou ridiculamente pequenos, ela aproximava-se logo, para reconhecer e depois brincar ou afastar-se. Mas bastava ser um outro animal que viesse pela trela e fosse muito condicionado para ser um mundo distinto.  Fosse um daqueles medrosos que se colocam em postura de evitar as situações, ela aproximava-se como sempre, mas ao chegar muito próximo, atacava violentamente, de forma súbita e com um comportamento estranho e inédito.


Esta cadelinha foi parar a outros donos, que ao observar este comportamento decidiram que esta situação tinha que ser corrigida, pelo que pensaram logo em treino de cães. A cadela em questão teria que ser treinada e condicionada no seu instinto e sentimentos, para não atacar outros cães. E aqui é que o nosso agricultor usou o seu espírito revolucionário ao formular uma teoria. Seria bom usar esta pequena cadela para detectar cães que perderam a sua alegria, e que poderiam ser treinados para reagirem como cães normais. Esses animais é que precisavam de treino e de mais convívio com matilhas, voltarem a contactar com as suas raízes. Quem sabe o tempo excessivo de diferentes clausuras cause alguma mudança no mundo sub-atómico dos átomos que formam as células, que formam os diferentes tecidos celulares, que basicamente formam aquele ser vivo que é a companhia do ser humano. Quem sabe sobre esta energia?


Muitas vezes vê-se o mal nos outros, mas esquece-se de olhar para os defeitos ou analisar os problemas próprios. Bom mesmo era deixar de treinar os melhores amigos e começar uma escola de treino de donos. Afinal quem mudou radicalmente e em poucas gerações o modo de vida foram os humanos, que agora sujeitam os animais domésticos a situações pouco saudáveis. Os cães sempre foram um braço direito para diferentes actividades humanas até há bem pouco tempo. Agora neste nosso mundo industrializado e desenvolvido,o braço direito é o do humano, o braço que segura a trela, e o cão tem que ter conforto, alimentação e viver com venenos espalhados, por dentro e por fora, para todo o tipo de parasitas. É assim que o agricultor vê a realidade onde vive. Pouca agricultura e pouca revolução. Pouco tempo para olhar e menos ainda para reflectir.


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