quarta-feira, dezembro 09, 2020

MARIA JOÃO PIRES EM ENTREVISTA AO JORNAL EXPRESSO

 Aqui se reproduz uma pequena parte de uma conversa jornalística da nossa enorme pianista Maria João Pires. Fala do seu percurso, fala da actualidade (de onde retirei o excerto que se segue) e fala sobre música. Foi já há muitos anos que me cruzei mais de perto com a Maria João Pires, na sua Quinta de Belgais, dando uma ajudinha na cozinha, como cozinheiro. Uma altura em que Belgais fervilhava de acontecimentos e de muita gente a orbitar ali em volta. 

A nossa enorme pianista é uma pessoa sábia, coloco-a ao nível do José Saramago, mas tem aquele toque de artista que transforma grandes ideias em projectos fora do tempo. Entrevista da jornalista Luciana Leiderfarb, publicada na revista do Expresso de 4 de Dezembro. Destaco aqui apenas uma parte das perguntas e respostas, mas aconselho a leitura integral, consultando o Expresso on line ou agarrando por aí a revista

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Luciana - Falou recentemente de como as temporadas de concertos gastam num só evento recursos que poderiam ser utilizados para construir um tecido cultural mais duradouro. O mundo das salas de concerto não é sustentável?

Maria João Pires (MJP) - É um círculo vicioso. Para ser sustentável tem que se desenvolver um lado comercial, e se o peso do lado comercial for demasiado, arrasa-se com o objetivo principal, que seria a possibilidade de as pessoas terem uma vivência artística. A grande questão é se esta pandemia vai ajudar ou se vai agravar a situação. Ajudar seria dar oportunidades aos verdadeiros músicos, e para isso teríamos de separar as coisas. Houve um tempo em que havia boa e má música (e não me refiro só à clássica); era mais fácil distinguir uma manifestação artística e criativa de outra meramente comercial. Agora, as duas passaram a estar perigosamente misturadas. Digo ‘perigosamente’ porque um público sem conhecimentos vai ser influenciado pela falta de distinção. Vai consumir entretenimento — que se reduz a criar situações em que as pessoas estão entretidas, divertidas — pensando estar a consumir arte, e comprará mais bilhetes. Ora, isto é muito diferente da transmissão de uma arte. A arte é algo de muito profundo, que exprime aquilo que nós somos — não é por acaso que mandam para o espaço uma nave espacial com música de Mozart ou dos Beatles.

Luciana - E podem juntar-se, arte e entretenimento?

MJP - Não digo que alguém que entretenha um público não tenha dignidade. Mas separar isso da arte é muito importante. Não podemos sempre misturar tudo. Misturar tudo tira-nos a credibilidade como humanos. Estamos a entrar numa era em que deixamos de ser credíveis. Fazemos o contrário do que gostaríamos de ter. Vivemos numa dualidade ridícula, tão ridícula que até os chefes de Estado deste mundo dizem coisas sem o mínimo de inteligência ou de capacidade de discernimento.




Luciana - Que tipo de reflexão o mundo deveria fazer neste momento, em que estamos a lutar contra uma pandemia?

MJP - Não sei se estamos a lutar contra uma pandemia. Estamos numa pandemia na qual gostaríamos de deixar de estar. Mas nunca pensamos — e falo em geral — que a primeira questão não é vacinar-nos para não termos mais vírus. Não. A primeira coisa a refletir é porque é que aconteceu a pandemia, porque é que a criámos. Não veio do céu, não foi Nosso Senhor que a mandou para nos castigar. E se fosse assim, haveria na mesma que perguntar: castigar porquê? Pelas asneiras que fizemos? É preciso pensar a razão porque estamos com os mais dramáticos problemas ambientais, com as piores perspetivas de futuro, e o que vamos fazer acerca disso.

Luciana - Não estamos a pensar no futuro?

MJP - Não só falta reflexão como nem sequer há informação. As pessoas não sabem os erros que cometem contra a sua saúde, contra a saúde futura dos seus filhos — e continuam a fazer filhos como se fosse muito engraçado, como se fosse divertido continuar a ter crianças que se deitam neste mundo sem saberem de todo o que se está a passar, como é que amanhã vão comer ou beber. Enquanto não houver uma reflexão coletiva sobre multinacionais como a Monsanto ou sobre a indústria animal, que é a primeira das causas da destruição planetária, não vamos chegar a lado nenhum. Ninguém toca na indústria animal, reparou? Claro, a economia é importante, ninguém quer ver o mundo a morrer de fome porque as coisas tiveram de ser mudadas. Mas, se não mudarmos, vamos ver na mesma milhões de pessoas a morrer de fome.

Luciana - Este negacionismo é útil aos populismos que proliferam no mundo de hoje?

MJP - Não tenho pretensão de ser analista política e sou bastante ignorante a esse nível, mas a ascensão da extrema-direita não é de hoje. Foi também um ato de negacionismo pensarmos que não chegaria onde chegou. Existe um bom senso mínimo para ver que se pegarmos em cem pessoas que votam na extrema-direita e lhes passarmos um filme a explicar o que se está a passar no mundo a nível do ambiente, económico, político, académico e humano, essas pessoas vão perceber e mudar de ideias na hora. Porque não é que as pessoas sejam más, as pessoas são educadas para serem más, são ignorantes. Trata-se de uma ignorância básica instalada a nível mundial, para tornar os povos manipuláveis.

Luciana - A ignorância é uma arma?

MJP - Uma arma terrível. Estamos nas mãos de um poder que não merece ter poder. E que não tem nada a ver com a política, não tenhamos ilusões: é um poder económico e financeiro — a política muda como eu mudo de camisa.
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Luciana Leiderfarb - jornalista nascida em Buenos Aires mas que se formou em Portugal no início dos anos 90. É jornalista premiada do Expresso.

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