Aqui se reproduz uma pequena parte de uma conversa jornalística da nossa enorme pianista Maria João Pires. Fala do seu percurso, fala da actualidade (de onde retirei o excerto que se segue) e fala sobre música. Foi já há muitos anos que me cruzei mais de perto com a Maria João Pires, na sua Quinta de Belgais, dando uma ajudinha na cozinha, como cozinheiro. Uma altura em que Belgais fervilhava de acontecimentos e de muita gente a orbitar ali em volta.
A nossa enorme pianista é uma pessoa sábia, coloco-a ao nível do José Saramago, mas tem aquele toque de artista que transforma grandes ideias em projectos fora do tempo. Entrevista da jornalista Luciana Leiderfarb, publicada na revista do Expresso de 4 de Dezembro. Destaco aqui apenas uma parte das perguntas e respostas, mas aconselho a leitura integral, consultando o Expresso on line ou agarrando por aí a revista
Luciana - Que tipo de reflexão o mundo deveria fazer neste momento, em que estamos a lutar contra uma pandemia?
MJP - Não sei se estamos a lutar contra uma pandemia. Estamos numa pandemia na qual gostaríamos de deixar de estar. Mas nunca pensamos — e falo em geral — que a primeira questão não é vacinar-nos para não termos mais vírus. Não. A primeira coisa a refletir é porque é que aconteceu a pandemia, porque é que a criámos. Não veio do céu, não foi Nosso Senhor que a mandou para nos castigar. E se fosse assim, haveria na mesma que perguntar: castigar porquê? Pelas asneiras que fizemos? É preciso pensar a razão porque estamos com os mais dramáticos problemas ambientais, com as piores perspetivas de futuro, e o que vamos fazer acerca disso.
Luciana - Não estamos a pensar no futuro?
MJP - Não só falta reflexão como nem sequer há informação. As pessoas não sabem os erros que cometem contra a sua saúde, contra a saúde futura dos seus filhos — e continuam a fazer filhos como se fosse muito engraçado, como se fosse divertido continuar a ter crianças que se deitam neste mundo sem saberem de todo o que se está a passar, como é que amanhã vão comer ou beber. Enquanto não houver uma reflexão coletiva sobre multinacionais como a Monsanto ou sobre a indústria animal, que é a primeira das causas da destruição planetária, não vamos chegar a lado nenhum. Ninguém toca na indústria animal, reparou? Claro, a economia é importante, ninguém quer ver o mundo a morrer de fome porque as coisas tiveram de ser mudadas. Mas, se não mudarmos, vamos ver na mesma milhões de pessoas a morrer de fome.
Luciana - Este negacionismo é útil aos populismos que proliferam no mundo de hoje?
MJP - Não tenho pretensão de ser analista política e sou bastante ignorante a esse nível, mas a ascensão da extrema-direita não é de hoje. Foi também um ato de negacionismo pensarmos que não chegaria onde chegou. Existe um bom senso mínimo para ver que se pegarmos em cem pessoas que votam na extrema-direita e lhes passarmos um filme a explicar o que se está a passar no mundo a nível do ambiente, económico, político, académico e humano, essas pessoas vão perceber e mudar de ideias na hora. Porque não é que as pessoas sejam más, as pessoas são educadas para serem más, são ignorantes. Trata-se de uma ignorância básica instalada a nível mundial, para tornar os povos manipuláveis.
Luciana - A ignorância é uma arma?
MJP - Uma arma terrível. Estamos nas mãos de um poder que não merece ter poder. E que não tem nada a ver com a política, não tenhamos ilusões: é um poder económico e financeiro — a política muda como eu mudo de camisa.
"(...)
Luciana - Falou recentemente de como as temporadas de concertos gastam num só evento recursos que poderiam ser utilizados para construir um tecido cultural mais duradouro. O mundo das salas de concerto não é sustentável?
Maria João Pires (MJP) - É um círculo vicioso. Para ser sustentável tem que se desenvolver um lado comercial, e se o peso do lado comercial for demasiado, arrasa-se com o objetivo principal, que seria a possibilidade de as pessoas terem uma vivência artística. A grande questão é se esta pandemia vai ajudar ou se vai agravar a situação. Ajudar seria dar oportunidades aos verdadeiros músicos, e para isso teríamos de separar as coisas. Houve um tempo em que havia boa e má música (e não me refiro só à clássica); era mais fácil distinguir uma manifestação artística e criativa de outra meramente comercial. Agora, as duas passaram a estar perigosamente misturadas. Digo ‘perigosamente’ porque um público sem conhecimentos vai ser influenciado pela falta de distinção. Vai consumir entretenimento — que se reduz a criar situações em que as pessoas estão entretidas, divertidas — pensando estar a consumir arte, e comprará mais bilhetes. Ora, isto é muito diferente da transmissão de uma arte. A arte é algo de muito profundo, que exprime aquilo que nós somos — não é por acaso que mandam para o espaço uma nave espacial com música de Mozart ou dos Beatles.
Luciana - E podem juntar-se, arte e entretenimento?
MJP - Não digo que alguém que entretenha um público não tenha dignidade. Mas separar isso da arte é muito importante. Não podemos sempre misturar tudo. Misturar tudo tira-nos a credibilidade como humanos. Estamos a entrar numa era em que deixamos de ser credíveis. Fazemos o contrário do que gostaríamos de ter. Vivemos numa dualidade ridícula, tão ridícula que até os chefes de Estado deste mundo dizem coisas sem o mínimo de inteligência ou de capacidade de discernimento.
Maria João Pires (MJP) - É um círculo vicioso. Para ser sustentável tem que se desenvolver um lado comercial, e se o peso do lado comercial for demasiado, arrasa-se com o objetivo principal, que seria a possibilidade de as pessoas terem uma vivência artística. A grande questão é se esta pandemia vai ajudar ou se vai agravar a situação. Ajudar seria dar oportunidades aos verdadeiros músicos, e para isso teríamos de separar as coisas. Houve um tempo em que havia boa e má música (e não me refiro só à clássica); era mais fácil distinguir uma manifestação artística e criativa de outra meramente comercial. Agora, as duas passaram a estar perigosamente misturadas. Digo ‘perigosamente’ porque um público sem conhecimentos vai ser influenciado pela falta de distinção. Vai consumir entretenimento — que se reduz a criar situações em que as pessoas estão entretidas, divertidas — pensando estar a consumir arte, e comprará mais bilhetes. Ora, isto é muito diferente da transmissão de uma arte. A arte é algo de muito profundo, que exprime aquilo que nós somos — não é por acaso que mandam para o espaço uma nave espacial com música de Mozart ou dos Beatles.
Luciana - E podem juntar-se, arte e entretenimento?
MJP - Não digo que alguém que entretenha um público não tenha dignidade. Mas separar isso da arte é muito importante. Não podemos sempre misturar tudo. Misturar tudo tira-nos a credibilidade como humanos. Estamos a entrar numa era em que deixamos de ser credíveis. Fazemos o contrário do que gostaríamos de ter. Vivemos numa dualidade ridícula, tão ridícula que até os chefes de Estado deste mundo dizem coisas sem o mínimo de inteligência ou de capacidade de discernimento.
Luciana - Que tipo de reflexão o mundo deveria fazer neste momento, em que estamos a lutar contra uma pandemia?
MJP - Não sei se estamos a lutar contra uma pandemia. Estamos numa pandemia na qual gostaríamos de deixar de estar. Mas nunca pensamos — e falo em geral — que a primeira questão não é vacinar-nos para não termos mais vírus. Não. A primeira coisa a refletir é porque é que aconteceu a pandemia, porque é que a criámos. Não veio do céu, não foi Nosso Senhor que a mandou para nos castigar. E se fosse assim, haveria na mesma que perguntar: castigar porquê? Pelas asneiras que fizemos? É preciso pensar a razão porque estamos com os mais dramáticos problemas ambientais, com as piores perspetivas de futuro, e o que vamos fazer acerca disso.
Luciana - Não estamos a pensar no futuro?
MJP - Não só falta reflexão como nem sequer há informação. As pessoas não sabem os erros que cometem contra a sua saúde, contra a saúde futura dos seus filhos — e continuam a fazer filhos como se fosse muito engraçado, como se fosse divertido continuar a ter crianças que se deitam neste mundo sem saberem de todo o que se está a passar, como é que amanhã vão comer ou beber. Enquanto não houver uma reflexão coletiva sobre multinacionais como a Monsanto ou sobre a indústria animal, que é a primeira das causas da destruição planetária, não vamos chegar a lado nenhum. Ninguém toca na indústria animal, reparou? Claro, a economia é importante, ninguém quer ver o mundo a morrer de fome porque as coisas tiveram de ser mudadas. Mas, se não mudarmos, vamos ver na mesma milhões de pessoas a morrer de fome.
Luciana - Este negacionismo é útil aos populismos que proliferam no mundo de hoje?
MJP - Não tenho pretensão de ser analista política e sou bastante ignorante a esse nível, mas a ascensão da extrema-direita não é de hoje. Foi também um ato de negacionismo pensarmos que não chegaria onde chegou. Existe um bom senso mínimo para ver que se pegarmos em cem pessoas que votam na extrema-direita e lhes passarmos um filme a explicar o que se está a passar no mundo a nível do ambiente, económico, político, académico e humano, essas pessoas vão perceber e mudar de ideias na hora. Porque não é que as pessoas sejam más, as pessoas são educadas para serem más, são ignorantes. Trata-se de uma ignorância básica instalada a nível mundial, para tornar os povos manipuláveis.
Luciana - A ignorância é uma arma?
MJP - Uma arma terrível. Estamos nas mãos de um poder que não merece ter poder. E que não tem nada a ver com a política, não tenhamos ilusões: é um poder económico e financeiro — a política muda como eu mudo de camisa.
(...)"
Luciana Leiderfarb - jornalista nascida em Buenos Aires mas que se formou em Portugal no início dos anos 90. É jornalista premiada do Expresso.
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