Mulheres, ambiente e aborto: o lugar «certo» para a medalha de mérito procriativo
ADELAIDE CHICHORRO FERREIRA
QUARTA-FEIRA, 30 DE SETEMBRO DE 2015
Este texto é escrito com mágoa. No assunto da homossexualidade a Igreja e certos comentaristas conservadores, como Laurinda Alves, no jornal Observador de 29.9.2015 (http://observador.pt/opiniao/aceita... ), têm culpas muito sérias no cartório, no que toca à promoção do ódio e da intolerância, independentemente de, no caso da homossexualidade, se tratar de escolha ou não. Pergunto: vamos andar a dissecar caso a caso, numa posição de ilegítima superioridade moral, se foi escolha ou não para podermos «tolerar»? E isso não é intrusão na vida privada de cada um? Entramos na sociedade da cusquice? Com os dinheiros dos impostos de quem? E em detrimento de que outros estudos?
Como se isso de se tratar de escolha ou não fosse sequer relevante para o caso! Só escolher colocar as coisas nesses termos (o que escrevemos, assim como o que dizemos ou não dizemos também é fruto de escolhas) comprova que existe, de facto, uma discriminação muito hipócrita na sociedade portuguesa, não só da homossexualidade como também de pessoas que fazem, ou são impelidas a fazer, «outras» escolhas na vida. A jornalista Laurinda Alves, para quem se lembra, foi uma acérrima lutadora anti-aborto na altura do 2º referendo sobre o mesmo. Membro destacado do então Movimento «Esperança» Portugal, deixou seguramente muitas mulheres neste país crivadas de desesperança.
Convém por exemplo ter em conta que a punição social excessiva das mulheres em matéria de aborto (e desigual no que se refere aos homens, que muitas vezes o incentivam) pode levar ao bullying, social e profissional, assim se destruindo os laços familiares heterossexuais, com todo o cortejo de consequências perniciosas para as famílias como a violência doméstica ou o suicídio. Já agora pergunto: concordam com ele os fundamentalistas «pró-vida»? Até parece que sim, a julgar pelas bulas dos medicamentos antidepressivos, que por aí se tomam ao desbarato, fomentando ironicamente a vida descartável. Além disso, não me admirava nada que uma tal punição social (não sustentada pela lei!) conduzisse, como escape para essas situações de discriminação, humilhação ou ostracização, ao acentuar de tendências homossexuais (sim, as tais «escolhas»…), talvez porque se trata neste caso, é bom dizê-lo, de relações muitíssimo mais seguras em matéria de risco de gravidez indesejada, e porque não admira, como é óbvio, que gato escaldado de água fria tenha medo. Afinal de contas, os preservativos não se rompem de vez em quando? A uma pessoa stressada não pode acontecer esquecer-se um dia de tomar a pílula? Mulheres desempregadas, com necessidade de alimentar a família, terão sempre dinheiro para a comprar?
No que toca propriamente ao aborto, tudo isto ocorre a par de gravíssimos fatores ambientais (a (co)incineração de resíduos é um deles, ou a libertação no ambiente de resíduos de medicamentos como é o caso da própria pílula…), que, em matéria de disrupção hormonal (causando também ela homossexualidade, mudança de sexo, infertilidade ou abortos), intervêm silenciosa mas de forma porventura não menos relevante, e impune, nos ecossistemas naturais e humanos, fruto de escolhas de gestores, cientistas e políticos porventura um bocadinho ignorantes, ainda por cima com inúmeros médicos coniventemente a assobiar para o lado. Até porque alguns, diga-se, vivem da cura dessa mesma infertilidade, tal como muitos outros vivem da suposta cura das doenças mentais provocadas pela intolerância. É esta a sociedade de mercado em que cada vez mais vivemos, e nós todos estamos a ser cobaias.
Creio que poderá também ser uma questão de objeção de consciência manter alguma distância crítica relativamente à própria Igreja Católica, instituição ainda muito machista e patriarcal, que, em vez de realmente ajudar muitas das mulheres afetadas pelo aborto, cada vez mais abdica dos seus próprios princípios, facilitando o divórcio e promovendo inclusivamente a pornografia junto dos homens (era pelo menos o que se mostrava num documentário sobre o Vaticano que passou há tempos na TV), como se a poligamia fizesse realmente parte da natureza «animal» da maioria dos homens.
Somos todos animais humanos, convém recordar, além de que as «escolhas» da biologia pouco ou nada têm a ver com as escolhas humanas. Por vezes, são os ateus que mostram mais juízo do que os fundamentalistas católicos, ao chamarem a atenção, como há dias me foi dado ver nas redes sociais, para casos de mulheres que fogem, em horrível sofrimento, da ditadura poligâmica dos mórmons nos EUA (vá lá, nos EUA ainda podem fugir às ditaduras patriarcais… Uma ou outra consegue-o, entre muitas).
Pergunto agora: lá porque a Bíblia diz «crescei e multiplicai-vos», agora vale tudo, em matéria de procriação? É legítimo, por exemplo, que as jovens médicas andem ingenuamente convencidas de que dar óvulos para a procriação assistida é exatamente a mesma coisa que dar sangue? Quais as responsabilidades futuras que podem advir duma coisa e da outra? Não se tem em conta isso, ou o dinheiro é no fundo o que faz mover os médicos? Onde está a bioética? Instrumentalizar barrigas alheias, transformando o DNA numa mercadoria, trivializou-se, com a bênção da Igreja? Permitir que, por falta de empregos e excesso de entretenimento, os jovens adiem indefinidamente a natalidade, é algo que temos que aceitar como uma inevitabilidade? Que escolha se deve fazer: a da carreira ou a da vida? Para quando ambas? E já agora: que escolha fazer no dia das eleições?
Por mais que esperneiem, a conclusão que retiro disto tudo, ao fim de dois referendos sobre o aborto (o primeiro já em 1998), e de muitos outros anos de «fratura ideológica», passados no entanto a observar atentamente a realidade, é a de que os tais moralistas conservadores deram um tiro no pé. Com os gestos de disfarçada intolerância que se observam no artigo acima indicado de Laurinda Alves, e noutros redigidos por fervorosos anti-abortistas, influenciaram exasperantemente inúmeros microeventos de discriminação quotidiana, serrando inexoravelmente o galho da defesa da vida em que tão orgulhosamente se diziam apoiar. Ora, assim não me é possível confiar neles. Confiar cristãmente acaso é, ou pode ser, ignorar ou isolar quem sofre?
Em face de tudo isto, e porque no conceito de Vida deve estar incluído o percurso biográfico, uma mulher conseguir assumir uma gravidez depois dum aborto devia ser reconhecido como ato supremo de heroísmo, em função das ENORMES dificuldades que precisa de superar. Porque de facto já não há pachorra para fundamentalismos religiosos de qualquer espécie, tiro o meu chapéu a essas (muitas) mulheres e mães, sem no entanto precisar de lhes dar nenhuma medalha, pois acredito que por uma questão de dignidade a recusassem liminarmente, ou que até mandassem os seus carrascos psicológicos enfiá-la num determinado sítio.
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