terça-feira, setembro 10, 2024

TUDO É POSSÍVEL. ATÉ O IMPOSSÍVEL - CRÓNICA LITERÁRIA 3

Comecemos pelas apresentações. Como numa peça de teatro é bom apresentar o local onde tudo se passa. 2024, Verão ameno em terras do interior raiano, numa casa centenária onde uma associação gere um espaço de acolhimento de artistas. Um andar superior num edifício que noutros tempos já acolheu famílias, negócios e com uma vista superior sobre a campina. Da varanda também se avista o futuro da cultura naquela terra, onde a juventude aparece renascida, mas onde parece não caber, caindo para o litoral ou ajudando a perpetuar essa antiga diáspora. Portugueses que se espraiam num império agora sem mapa e sem imperador, mais democrático, mas dentro de outro império onde um rei se veste de verde monetário, tirano e escravizador.

Não se sabe quem teve a ideia de partir mar afora. Mas foi um pequeno atrevimento. Que se foi expandindo na medida de cada descoberta, e na medida das possibilidades, das necessidades e dos sonhos. Quem vinha a seguir, com o ímpeto da juventude, chegava mais longe e sonhava o impossível. E assim estendia, ou fazia crescer em altura (não se sabe para que lado cresce) a medida das possibilidades. Alargava-a, talvez seja o termo. Talvez cresça em forma circular, como o nosso planeta visto de fora.

A personagem central desta crónica dos tempos actuais é a Viviana. Os seus padrinhos não sabiam, mas assim foi que a raiz latina do nome deu fogosidade e energia a esta alma. A inquietude e criatividade vieram transportadas pelos genes, que como hoje se sabe podem aprimorar ou degenerar em certos indivíduos. A Viviana não sabe bem como, mas desde cedo sentiu que o seu mundo passava pelas artes, modo de se exprimir e de se dar ao grande mundo, modo de ela própria ajudar a transformá-lo numa aldeia global melhor. A sua melhor companhia é uma cadela, que a acompanha numa relação de lealdade. A sua ligação aos outros é feita de mil e uma maneiras, do wapp ao correio escrito, passando pelos números de telemóvel. O seu atrevimento faz com que apareça neste mundo das crónicas mundanas.

Como foram elas parar a este cenário do interior é uma longa história, que um dia caberá nas páginas escritas, mas não de uma crónica. Essa longa história não se sabe onde começa, mas certamente começa nesse sonhar as coisas de um modo diferente, e na força de quebrar rotinas e desafiar as coisas como estabelecidas pela norma da sociedade.

A Viviana não se cruzou com o Filipe. E nunca falou com ele. O seu mais do que provável encontro foi impossível. Gravitam os dois no difícil mundo de viver nas artes, com artes de viver sonhando um mundo melhor para os outros. Dão-se assim à sociedade, que muitas vezes não lhes reconhece com um aplauso a sua elevação.

O Filipe e a sua cadela, que resgatou há poucas semanas de um canil, estiveram de férias de Verão. O problema dele, como dono pela primeira vez de um cão, era o de garantir à sua nova companheira a melhor solução para a sua ausência. O que conseguiu, pois foi levá-la a uma quinta de amigos que a acolheram por esses breves dias de viagem para o estrangeiro. O regresso tinha uma prioridade bem estabelecida, passar logo o primeiro dia sempre com a cadela. Tê-la como sombra para sentir a frescura da sua companhia.

O Filipe é o responsável máximo pela associação que gere o espaço de acolhimento dos artistas, nesta zona raiana. O seu nome remete-nos para algo que marcou a história dos países que a raia agora une, mas que antes dividia. E que antes unia. E que ainda mais anteriormente dividia. Nos dias de hoje é a união europeia, que abriu as fronteiras. Antes disso era a divisão, a fronteira com os seus guardas-fiscais e os contrabandistas. Mais longe os tempos em que ambos os lados estiveram unidos, lá mais para o século 17, numa coisa improvável, mas que aconteceu sem grandes guerras. E lá mais para trás, as anteriores guerras com Castilla, algumas são histórias de bravura dos poucos heróis portugueses que ficaram para a história; as guerras que estabeleceram as fronteiras que apartaram as gentes.

Essa mais antiga união política veio pela mão monarca dos Filipes espanhóis. Foram eles os imperadores que governaram o maior império que uniu continentes, por vias de um mar monstruoso. Dessas coisas o actor e activista só sabe o que aprendeu na história, agora os tempos não são de guerras com os espanhóis. Apenas os catalães, os bascos e os galegos ainda movimentam corações com o sonho da independência. Agora são tempos de se cruzar para a raia espanhola, e a cultura é um bonito barco de se velejar. Viajar, conviver, partilhar, fazer de cada dia um momento de aproximação das pessoas, entre si, claro, mas também rumo a diferentes causas que movem a sociedade.

É nesta terra raiana que acontecem coisas extraordinárias. Há coisas que ficam na memória de muitos, outras ficam só no conhecimento de quem as viveu. E outras coisas acrescentam a ficção ao ambiente próprio de cada lugar, como fica bem fazer quando se conta um conto. A verdade é que algumas décadas atrás, naquele lugar, nasceu uma associação que pretendia dinamizar a cultura, com os jovens. E essa associação nunca esmoreceu. Enfrentou marés adversas, ventos contrários, mas lá foi navegando. Transformando as noites perdidas num mar revolto, em dias luminosos em terra firme. Com o teatro como âncora, foi deitando redes a outras expressões culturais e chegou aos nossos dias. Com uma actividade de entrega voluntária que faz inveja a algumas estruturas profissionais.

No dia do encontro impossível, Filipe está já com a sua cadela, a matar as suas saudades. Viviana está com a sua cadela, já com saudades antecipadas da sua passagem por esta terra que nunca antes tinha visitado. Prepara-se para sair daquele andar do antigo edifício, já se despediu da imensa vista com terras espanholas no horizonte mais longínquo. Ele entra no pequeno átrio de acesso às escadas e sente aquela frescura do espaço sombrio e de granito e madeiras vetustas. Sobe as escadas nervoso miudinho, nesse dia vai receber um grupo de artistas nessa sua casa colectiva, para uma residência artística. O atrevimento passa por abordar as Partes Sensíveis. Ela não sabe que o encontro impossível está para acontecer, ele não quer saber. Sobe ele, com a sua sombra canina. Já é a segunda vez que ali vai naquela manhã. Escada acima, escada abaixo, elevando-se e deselevando-se como tantas outras vezes, usando a força das suas pernas. Chega cansado, ainda o dia vai a meio. Para ir para sua casa, para ir trabalhar, todos os dias tem escadas para vencer, só no palco sente o relaxe de ver subir o pano sem ter que se cansar, o descanso de caminhar pelo mundo, subir ao alto da cultura ou descer ao inferno de Dante sem sair da planura.

Esta crónica é triangular, e falta ainda o terceiro interveniente nesta reflexão sobre as comunicações entre quem se atreve. Se Viviana está no andar do edifício com história, e nunca falou com o Filipe, se estamos já com décadas de utilização de telemóveis e aparelhos espertos com'ó raio, mais ou menos portáteis, quem faz a ligação impossível entre eles? É outra longa história, nesta caso são outras longas histórias, a chegada de Jota àquela sua terra, a chegada de Viviana ao centro do mundo de Jota, a chegada de Filipe ao mundo cultural de Jota. Mas deste personagem não reza esta história. Basta ficarmos com esta consoante em maiúscula. Não tem cadela a fazer-lhe companhia. Só às vezes. E neste momento falta-lhe esse elo comum. E não vive no mundo da cultura. Só às vezes. Neste momento sente falta desse elo comum, mas os dias não dão para tudo. E tudo na vida são opções, umas mais fatais do que outras.

Há mais de um mês atrás Jota tenta entrar em contacto com Viviana, quer saber que lhe aconteceu. Tem o seu email, e dois números para a contactar. Usa apenas um telemóvel que era de última geração há 20 anos atrás, ainda o wapp não tinha sido lançado. O seu último paradeiro, de seu conhecimento, tinha sido ali bem perto, numa grande herdade, mas depois não soube o que lhe aconteceu. Liga-lhe, mas nunca tem resposta. Manda um email, não gosta de usar sms. O correio sempre chega ao destinatário; mas também nada. Até que finalmente tem notícias dela, o seu telemóvel toca e... afinal está noutra herdade vizinha, desta feita a acompanhar a pastorícia e a trabalhar no fabrico artesanal de queijos. Da cultura para a agricultura? Pouco acesso aos emails, mas lá chegou o dia. E indo trabalhar na cultura onde fosse sendo chamada, mais para o litoral, claro. Para isso tinha liberdade laboral. Felicidade, numa opção pouco convencional. Parecia impossível, mas estava a acontecer. E não atendia as chamadas de telemóvel porque tinha outra vez mudado de número, o número contactado servia agora apenas para o wapp. Para chamadas era o número antigo outra vez.

Mais recentemente, Viviana volta a contactar. Afinal vai ter que sair da herdade, e inscreveu-se num workshop cultural a decorrer na capital do distrito, a cidade mais próxima da herdade. Precisava de ajuda para uns dias, encontrar um local onde pudesse aguardar o seu início, que seria uns dias depois. Ela, a sua cadela e a sua bagagem, mala grande e mochila. De preferência na cidade, onde já pudesse depois contar com esse local para base durante o mês da formação. Mas não foi possível essa solução. Alguns contactos com os velhos amigos de Jota não deram frutos. Sem pagar, ou seja, ficar num quarto emprestado, ainda seria possível, mas a companhia canina é sempre um problema acrescido. Mas talvez fosse uma boa ocasião para a Viviana ir conhecer a pequena associação cultural. Haveria disponibilidade?

Jota sabia que Filipe estava de férias com a família. Não queria de todo incomodar, pelo que não telefonou, como fez com os outros amigos. Mas arriscou um sms. Para o telemóvel associativo, quem sabe o aparelho ou cartão SIM tivessem ficado com outro responsável. Seria possível, estaria desocupado o andar para acolher esta artista, até ao início do workshop? A resposta chegou rápida: dependeria dos dias, porque de 25 a 31 começaria uma residência artística. Até 25 poderia mas teria que deixar tudo impecável, arrumação e limpeza. Ok, sem problemas. Mais uma troca de sms, pois ela precisava de uma solução até 27, se dará para ser pensada uma solução, em resposta um "Dá sempre". A Viviana teve luz verde e avançou, perturbando ao mínimo o merecido descanso e afastamento da família. Logo no dia seguinte, previsto para a chegada às instalações, nenhuma notícia. Certamente que estaria tudo bem. No dia seguinte, silêncio. Nem telemóvel, nem nada. Até que por interposta pessoa chega mensagem wapp a comunicar que está tudo bem, que viu sms mas que ficou sem saldo no telemóvel. Mas que agora tem net e já está contactável por outras vias. Estabelece-se então uma conversa onde Jota fala mais longamente com Viviana, que está mais do que contente com as instalações, com a vista incluída. E nessa conversa, poucos dias antes de dia 25, Jota acha que até 27 dará sempre. Mas que será preciso ver a solução em conjunto. A cronologia dos factos começa a ser determinante. Dia 24, início da tarde, Viviana manda um email a perguntar se tem que arrumar tudo e sair na manhã seguinte. Jota não abre o seu computador nessa tarde. Nem nessa noite, quando ela envia outro mail a insistir. Mas abre e lê na manhã seguinte, e responde bem cedinho que talvez se arranje solução, passada meia-hora ela responde a dizer que na dúvida tinha já tudo limpo e arrumadinho, mas assim esperaria um pouco mais para sair. Jota faz contactos com outros velhos amigos de Castelo Branco, mas resultam em nada de soluções.

Um par de horas depois é Filipe, que liga a Jota, muito incomodado pelo facto de ter subido as escadas e ter visto que afinal ela ainda lá tem as coisas da cadela e que não saiu. Do outro lado da linha etérea por onde se estabelece a breve conversa, a comunicação de um mal-entendido, mas que facilmente se resolverá, pois ela teria tudo pronto para sair. Era só questão de sair, claro. Mas Filipe não a vê lá, apenas encontra as coisas da cadela, comedouro e bebedouro. Terá saído, mas estará contactável pelo wapp? Jota manda-lhe então uma mensagem por essa única via possível, usando o wapp da interposta pessoa, a comunicar que tem que sair o mais depressa possível, para ligar de volta assim que leia a mensagem. Filipe espera com impaciência, até que manda sms a perguntar se há novidades. Nada, ela não deu sinais de vida. Por onde andará, com a sua cadela? Já depois de almoço, mais impaciente, novo sms a perguntar se há novidades. Pedido para conferir se há resposta à mensagem wapp, e sim, havia uma resposta há 10 minutos atrás, a dizer que ia arrumar tudo para sair, e a perguntar quanto tempo ainda tinha. Chamada por wapp imediata, a dar 5 minutos, Viviana diz que esteve no quarto toda a manhã e que não deu por barulho nenhum, certamente adormeceu quando ele tinha subido todos os degraus, e depois descido sem a ver lá dentro. Adormecida ela e também a sua cadela, que não deu sinais de vida.

Mas o melhor, que foi o pior, estava para vir. Nessa pequena conversa em que transmite os 5 minutos, ela diz-lhe que afinal, para coisas urgentes, o número de telemóvel associado ao wapp não dá para fazer chamadas, mas dá para receber. Ah, que informação preciosa... mas também tão atrasada! Agora de nada serve, pensa ele, agora é impossível alguma coisa correr mal. Chamada para o Filipe a dizer que ela vai sair em 5 minutos, passados esses 5 minutos ele devolve a chamada a dizer que está farto da situação, pois está à porta, lá em cima, com a sua cadela agitada, pois está uma outra cadela lá dentro a ladrar, já bateu à porta, e com insistência e não está lá ninguém. Não vai entrar por causa da cadela, mas Jota assegura que ela deve estar na casa-de-banho, ou na varanda, e não está a ouvir bater à porta. Ela está lá dentro pois há 5 minutos tinha acabado de confirmar isso mesmo. Mas nem ouve a cadela a ladrar??? Jota liga-lhe então para o tal número, toca, toca, ninguém atende. Insiste, um minuto depois, nada. Um minuto depois sim, atende, antes estava num último banho para sair fresca rumo à cidade. E saiu. E o Filipe foi então confirmar se dali a um par de horas os outros artistas poderiam aceder ao espaço em boas condições. Mas eles já não se cruzaram, nem as suas cadelas. Mas essas ficaram a conhecer-se pelos cheiros. Para elas o encontro foi possível e aconteceu, mesmo não acontecendo aos olhos dos humanos. Já para quem se atreve a tanto no mundo das artes, tornando possíveis tantas coisas que pareciam não o ser, o vasto mundo de possibilidades de comunicação, e a falta de jeito dos humanos para se entenderem (mesmo depois de milhares de anos a usarem a fala), acabaram por fazer o impossível.

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