sábado, abril 13, 2024

OPERAÇÃO LARANJOÃO - CRÓNICA LITERÁRIA 2

 João pertence à espécie Homo sapiens. Homo sapiens sapiens, a única subespécie que sobreviveu. O humano actual é conhecido por parte da evolução ter tido comportamento de caçador-recolector. A sapiência a dobrar deste espécime particular, aplicou-a na caça às moscas caseiras, um conjunto mal estudado que engloba algumas espécies diferentes de insectos incomodativos e voadores. Já não há mamutes para caçar, e ele sabe que não é carnívoro, por isso caça bichinhos aperreantes. Mas também se dedica à recolha de alimentos, anda sempre à caça de fruta boa, bem madurinha, seleccionada pelos seus olhos gulosos. Gula a dobrar.

Há coincidências que nos deixam a pensar nos desígnios do destino, no acaso que constrói e destrói casos simples ou complexos. Hoje é a onomástica que traz tragédia e gula a juntarem-se num momento real.

António é do tempo em que as crianças andavam no campo a cobiçar as árvores de fruto, à espreita da época em que a fruta começava a ficar com cores de ser roubada. Era preciso ser astucioso para escapar aos tiros com sal-gema, disparados pela caçadeira defensora dos legítimos direitos do senhor proprietário. Na época, a árvore dava bom rendimento ao seu fruticultor, mas trepada e aliviada de algum peso ajudava a matar a fome à extensa trupe da miudagem. Um dos filhos de António também se chamava João, mas já foi criado num meio sub-urbano.

Nos dias de hoje os frutos dos pequenos agricultores, principalmente dos que o são sendo apenas proprietários de pequenas quintas, quintais ou terrenos encalhados de herança, não serve para a cobiça das crianças. As árvores dão generosas camadas cujo futuro mais certo é caírem ao chão. O guloso João apanha a fruta e gosta de contrariar esse futuro, tornando ameixas e laranjas em iguarias certas para certos apreciadores. Tangerinas, maçãs e nêsperas sem pesticidas, sem regas intensivas. A gravidade nestas pérolas arbóreas fica a meio caminho, quando ele as colhe e vão caindo, uma a uma, cacho a cacho, no saco dependurado.

António chamou João ao seu primeiro fruto. Uma tia logo atalhou, como uma sentença de prisão perpétua: - Os Joões são todos malucos!

Não lhe foi fácil lidar com o primeiro filho. É sempre uma aprendizagem que se faz, ao vivo e saltando barreiras. Mas quis o destino que, na sua juventude, a maluqueira lhe levasse o seu rebento para as drogas. Leves, pesadas, muitas desintoxicações, e recaídas.

Outras voltas do destino fizeram com que um destes dias primaveris, o frutósofo tivesse que se deslocar à grande cidade, para levar um equipamento de ginástica ligeirinha para casa dos cansados pais. Que são sua família. Levou o aparelho e colocou na bagagem laranjas, limões e cidreira, em folhas secas para tisanas digestivas. Uma bebida com profundas raízes familiares. Mas em ano de muitas laranjas, que são quase todos os anos, levou muitas mais para entregar em mão a uma outra pessoa.

Maria João abusa das laranjas. À dentada gulosa, em sumo a rodos, é devoradora de laranjas. É quase um vício. Uma propensão irresistível, no mínimo. Morando ali para os mesmos lados, logo o João lhe comunicou que levava uma sacada de laranjas. Se qiueria a oferta? - Claro, pá!

Mas como entregar? Maria João sempre a correr atrasada, sem tempo para estes imprevistos. Quem lhe poderia levar o divinal néctar embrulhado de cor-de-laranja? O seu lindo e generoso filho? - Não, o meu João não está cá.

E se combinassem a entrega ao seu colega de profissão, o músico João Farinha, com quem se reúne regularmente para ensaios e shows? Contactado esse outro João, nada feito, pouco prático e possivelmente um processo demorado. Ficarão as laranjas pelo caminho?

Recuando ao João do António. Grande maluco, casou, teve filhos. Mas o vício voltou, divorciou-se, só encontrou abrigo na casa dos sofredores de décadas, progenitores que nunca desistiram. Já reformado, o sempre pacato António, num dia normal, viu um futuro muito incerto entrar na sua casa. O seu filho caiu no chão. Redondo. Uma pancada fatal, desferida pelo próprio pai. Gesto desesperado, certamente, desfecho inesperado.

Voltando ao João das doces laranjas maduras. E à João, a doce diva. Foi ela própria, no seu carro familiar, buscar a saca que continha as maiores, mais sumarentas, mais melosas e aromáticas laranjas encontradas nesta safra. Enormes, gigantescas, uns laranjões dignos de registo. Largou tudo o que estava a fazer, incertamente atrasou outras coisas planeadas, mas aproveitou para passear as suas bonitas cadelas. E pôs a conversa em dia, que para estes Joões as conversas, por mais malucas que sejam, são como as cerejas. Mas, ainda assim, ficam sempre coisas para contar.

Para coroar estas andanças do destino, concluída mais uma entrega bem sucedida de laranjas, resta situar o local, ali numa rua ao acaso. E por acaso em frente ao Palácio Nacional onde nasceu el-Rei D. João VI, ali mesmo onde as árvores dos frondosos jardins viram depois nascer quase todos os seus filhos.

Fosse esta uma operação militar e o relatório vitorioso começaria assim: OPERAÇÃO LARANJOÃO.

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