terça-feira, janeiro 02, 2024

ABERTURA DO ANO

 Com este texto fica oficialmente aberto o ano de reflexões e partilhas aqui no Malfadado. Já saí do Facebook, mantenho a página aberta apenas para divulgar a blogosfera e o eco-sítio da casinha gandaresa e também para receber mensagens de algumas pessoas que ali me encontram mais facilmente. Mas, na verdade, de vez em quando fico a ver as novidades de amigos, de forma mais ou menos passiva. Seja como for, é algo que decidi não fazer diariamente, e só de vez em quando abro o meu Fb. Mais tempo longe do Fb, mais tempo perto do que há para fazer aqui e ali, mais perto de amigos, mais perto da boa cultura que hoje temos à disposição.

E para abrir o ano fica então um texto poético e filosófico sobre... a bicicleta. Da autoria de um utilizador de bicicleta que não está na lista dos meus amigos, mas que uma amiga partilhou no seu Fb. E como é um texto partilhado sem restrições, roubei-o para aqui na íntegra e com referência, e a devida vénia, ao seu autor, o Abel Coentrão. E acompanho o texto com uma ilustração do famoso Sempé, colada no final. Companhia para o texto que foi escolhida pelo Abel Coentrão, na sua publicação no Fb (link).

O elogio da felicidade

Li num livrinho de Marc Augé:
A felicidade tem duas rodas e uma campainha,
leva-se a pedalar, como quem caminha
apenas um pouco mais depressa.
E, na verdade, é o que se vê:
Com ela, o tempo pouco interessa,
pois de pernas com câmaras de ar,
absorvo a rua e ainda observo o mar.

A vida não é, de facto, uma recta.
Por onde andavas, minha bicicleta?
Diziam-me que a felicidade vinha com auto-rádio/CD
quatro rodas, turbo, A.C.
e, para mim, caixa automática.
E eu achei que a vida, assim, seria prática.
Contudo, fui só mais um na fila, ponto-morto,
em transe no trânsito, a ver o dia dar para o torto.

Mas se vida não é, de facto, uma recta,
por que raios voltei eu à bicicleta?
Na rua-estrada há quem se atrapalhe com ela,
outros abespinham-se só por vê-la
e, perante a (in)felicidade, atiram-na p’rà berma
de buzina aos gritos e um “Sai daqui, palerma!”
E ela, indefesa, tantas vezes com receio,
só pede o seu direito à rua e a um metro e meio.

Ninguém escapa. Até o ciclista domingueiro,
de jersey, capacete, em velocidade de cruzeiro,
é destratado como um cidadão de segunda
e leva uma rasante, à entrada da rotunda.
Tudo se lhe perdoa, à felicidade,
ande ela pelo campo, ou p’la cidade,
mas só numa Volta a Portugal.
Que p’ra ser feliz – é óbvio – há que ser profissional.

Basta! De contra-relógios está este inferno cheio
e a vida é já uma torre, com uma graça ou outra pelo meio.
O que é preciso é um pelotão que traga Portugal de volta
para podermos ver crianças na rua, sem escolta
a dar ao pedal à vida e à felicidade
lá nos interstícios brandos da cidade.
Sem amuos, palavrões, buzinadelas,
nem encontrões que nos ponham a ver estrelas.

A bicicleta é um humanismo? É.
Como não dar razão ao Marc Augé
e ao Ilich, das “Ferramentas para a convivialidade”?
Vamos lá, por isso, tirar o pó à felicidade.
Como eles, também eu quero essa revolução
de poder ir em duas rodas, em contramão,
invertendo o sentido da desdita
que faz dos lentos os fracos desta fita.

Ah felicidade, que me importa o pneu vazio.
Quero é que não me falte o ar, a força, o pio,
para poder levar-te, rua fora, a bendizer
o dia em que redescobri, em ti, tanto prazer!

Abel Coentrão, 2023



Sem comentários: