aqui se narram as aventuras de um portuguesito que desde tenra idade é vítima de erros vários, mas com abertura para outros textos de reflexão e de intervenção cívica
sábado, janeiro 25, 2025
TRAÇAR O DESTINO - CRÓNICA LITERÁRIA 4
Um dos grandes mistérios que nunca se poderá desvendar são os desígnios de Deus. Essa entidade a quem atribuem uma tão grande responsabilidade de dirigir a vida na Terra, e até a vida de cada um de nós. Essa tarefa divina que para alguns crentes lhes exige dedicações e pedidos vários, rezas e ladainhas. A mão de Deus pinta ou não os dias que nos são dados, esta é a pergunta do mistério.
Conceição ajoelhou, mas não para rezar em posição de súplica. Antes de cair para o lado ainda conseguiu chamar a filha mais nova, Artemisa.
Um destes dias luminosos de final do Outono, enquanto o Inverno se preparava para chegar à boleia das renas do São Nicolau, Conceição dava uns retoques numa das suas pinturas murais naquela que é a sua terra de adopção, onde os seus pés viajantes pisaram a terra lavrada pela paixão ardente e aí criaram raízes sólidas e profundas. Nesse mural, no largo da biblioteca municipal, as crianças têm um destaque especial.
O destino fez com que Conceição, nesse final de ano de horizontes que depois se lhe renovaram sem que o tivesse pedido, encontrasse um vizinho que ali passava, desapressado. De pincel na mão lá ouviu esse vizinho e visita de casa comentar que em boa hora via esse trabalho de rejuvenescimento e de nova vida das crianças. É que nessa época religiosa de encontros e fraternidade, a esposa do vizinho tinha tido a ideia de se fotografarem ali mesmo, à frente do mural, para depois fazerem dessa foto o seu habitual cartãozinho de boas-festas. E com as cores reavivadas, era o ideal para a foto. Faltava ainda fazer essa foto.
Artemisa já foi criança. Há quem a reconheça nos traços de uma das crianças do mural. A que segura na mão uma pequena ave, um passarinho que poeticamente jaz imóvel na pintura, mas que pode estar apenas ferido. Pode apenas ter batido numa janela, num vôo rumo ao seu destino, e caído do céu nas traseiras da casa dessa criança, que a segura e acarinha, segurando a sua vida. Artemisa é destas jovens que se isola do mundo cinzento em que vive, com a ajuda dos auriculares. A música nos seus ouvidos, a música na sua vida, é o que lhe dá fogo à arte que lhe corre nas veias. Traz nos genes a história de gentes simples de Cabo Verde, onde a arte se exprime de diferentes formas, mas de forma singular pela cultura que ali se desenvolveu. Mas da parte da mãe traz também, nos outros 50% dos genes, a arte e a história de gentes simples da Gândara e Gafanhas. De tempos de lavouras de transformação do moliço em fertilidade das terras agrícolas.
Estaria Deus, por acaso, de passagem naquela rua partilhada por estes vizinhos, no dia em que Conceição caiu em prostração, em posição de súplica, e conseguiu ainda chamar por Artemisa? Nesse dia, a essa mesma hora, os vizinhos estão a enviar o seu cartãozinho de boas-festas aos familiares e amigos, desejando felicidades e um mundo melhor no futuro, com sorrisos e paz. Facilmente um ateu poderá constatar ironicamente que seria fácil Deus andar por estas paragens, não seria um acaso do destino. É que Deus não deve andar pelo Médio Oriente há muito tempo, a Palestina de certeza que não faz parte da sua rota turística. E também não anda pelo leste da Europa, nem perto dos demasiados europeus que escavam fossos para estarem longe de outras culturas, semeando ódios e medos do que é estrangeiro. E apesar da confiança cega dos norte americanos n'Ele, só essa cegueira explica que não vejam que Deus não anda nas suas vidas há tempo demais. E assim vai continuar por sua decisão democrática por mais uns aninhos, para infelicidade de outros tantos americanos que Deus também não vê. Estaria Deus de passagem, ou acaso ali criou raízes naquela rua que desemboca numa igreja de um lado, e que do outro lado dá acesso a um santuário mariano regional, cuja existência remonta a mais de 800 anos? Se a madeira falasse, talvez a figura de Santa Inês que ali existe, do lado esquerdo, nos desse a resposta. Ou comentasse, de forma televisiva ou em postura de influenciadora de esquerda, a criticada ausência de Deus dos mares e desertos onde milhares perdem a vida todos os anos, apenas porque vão em busca de uma vida condigna. Quantas vezes se afogam com rezas na boca, que não chegam ao céu? Que não estando lá para atender a essas súplicas, o Altíssimo pode então estar distraidamente a tecer o destino nessa rua.
Conceição tem três filhas, todas diferentes, todas iguais. Nessa tarde apenas partilhava a casa com Artemisa, por acaso não estava só, nem no seu isolado atelier de pintura. Estava em casa e tinha companhia. Essa inexperiente companhia, em idade de procura do seu espaço vital, ouvia os últimos compassos da música Cair do Céu, na voz da Maria João, nas notas do Mário Laginha. "se eu escorregar céu abaixo, atiras-me um cometa para me paraquedear, ou então põe-me uma nuvem branca e escura, como uma cama de água quente embaixinho dos meus pés, para eu me deitar". Só por acaso ouviu chamar o seu nome, talvez o final da música deixasse essas quatro sílabas ultrapassarem a barreira dos auriculares, talvez não ouvisse o nome mas sentisse a súplica. E naquela hora, naquele segundo instantâneo, ao contrário de ficar mais um bocadinho no seu mundo de arte, respondeu à chamada. E desceu.
Que linhas do destino se podem tecer para, alguns dias depois do chamamento em desespero, os vizinhos que usaram as pinturas de Conceição no seu cartãozinho encontrarem a sua filha Artemisa numa outra cidade, numa pastelaria ao acaso? A pastelaria que por acaso tem o nome da deusa que nasceu numa concha de madrepérola e que Camões nos contou que era a maior fã e a deusa tecedeira do destino das viagens dos portugueses por esses mares afora, assim criando laços com ilhas e terras mais ou menos distantes da lusa atenas. Naquele dia, naquela hora de passagem por um local estranho a todos, e respondendo à pergunta obrigatória do que faziam ali Artemisa e a sua irmã mais velha, ela própria contou que estavam ali na sequência do AVC sofrido por Conceição. E relatou como tudo aconteceu, e como encontrou a vítima já completamente caída e lhe falou sem obter resposta, inanimada. E logo telefonou a pedir ajuda. Emergência chamada, hospital local, encaminhamento para hospital de referência. Nessa tarde estavam ali para a hora da visita, já tinha passado o maior perigo. O perigo da hemorragia no cérebro provocar o coma, a morte cerebral. Em observação médica para evitar sequelas piores, na esperança de escapar sem sequelas. Um quase milagre.
É o destino que tem destas coisas, do acaso, das improbabilidades se concretizarem? Ou é caso para pensarmos que nada acontece ao acaso, tudo tem que ter uma explicação?
É a nossa imaginação que nos faz criar as linhas do destino, juntando encontros e desencontros pontuais da vida? Ou existem mesmo e não havendo melhor explicação deixamos que sejam as entidades divinas as suas fiadeiras?
O postalinho, para quem ainda não viu, malfadado link aqui.
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