segunda-feira, novembro 02, 2020

MARIA LUÍSA COLAÇO VIEIRA PINTO FIGUEIREDO

 O meu pai não teve irmãos. A minha mãe teve um irmão. O meu único tio. Que por sorte da minha família encontrou na minha única tia a sua alma gémea. A minha tia morreu este Inverno passado, vítima do sistema de saúde financiado pela indústria farmacêutica. Um sistema aceite pelas pessoas como os carneiros aceitam a sua sorte de rebanho, na fila para o matadouro. O sistema manteve-a como morta-viva até ao dia de hoje. Agora vão deixar repousar o seu corpo e o sistema deixa de lucrar com ela.

Fica aqui esta referência ao seu nome, pois pesquisando na net esta mulher de armas ainda não tinha nenhuma referência. Se pesquisarem por professora de biologia, Maria Luísa, Liceu Pedro Nunes, Lisboa a sua terra, nada irão encontrar. Certo, certo é que o seu nome constará nos ficheiros secretos do Partido Comunista Português. Mas nunca foi segredo que a minha tia foi militante desde os tempos da resistência fascista. Chegou a estar presa um bom par de dias, detida na rua, juntamente com o meu tio, mas foram depois separados na prisão, pressionados para confessarem o seu crime perante as autoridades do fascismo.

Um dia vou escrever aqui no Malfadado tudo o que presenciei no seu último ano de vida, até que a visitei a última vez e a vi completamente drogada e ausente. Seria Janeiro, levei-lhe os amendoins que me tinha pedido, mas já estava de tal modo que nem se lembrava de que os tinha pedido. E no dia seguinte, mesmo com os amendoins ali à vista, jurava que eu não tinha estado com ela na instituição do corredor da morte. Foi nesses momentos que percebi e aceitei a sua partida.

Já tinha referido aqui a minha tia (link para o Malfadado), mas faltou um texto com o seu nome, e ficará a faltar o registo de muitas memórias. Também aparecem outras referências à minha tia aqui no blogue, uma delas bem recente a propósito do balanço de 2019, como não, pois foi o ano em que a minha tia me pediu ajuda. Infelizmente era eu contra o sistema e o resto da família, e não fui mais forte. Mas aprendi com os erros, isso será sempre assim na vida de toda a gente que tenha tempo para sedimentar as aprendizagens. Quem não tem tempo para pensar, agarra-se ao terço ou quejandos...

A minha tia foi uma pessoa à frente do seu tempo, os meus tios durante os seus anos de ouro nunca tiveram televisão, não tinham automóvel nem carta de condução, só tiraram a carta depois de lhes ter saído num sorteio um automóvel. Sorteio? É verdade, um modesto Opel Corsa, vermelhinho, oferta do jornal diário ligado ao Partido Comunista, num sorteio em que as pessoas entregavam cadernetas completas de coisas publicadas no jornal. Eles tinham em casa a colecção completa de "O Diário", jornais e jornais empilhados nos cantos. Mas o jornal teve o seu fim, fazendo parte da história do jornalismo português.

A minha tia tinha uma intuição fora de série, era muito inteligente e os conhecimentos que adquiriu sustentavam uma argúcia e uma postura sempre muito segura. A minha tia funcionava como a memória da família, assisti a algumas conversas em que ela fazia desfilar personagens do passado, com nomes, parentescos, datas de acontecimentos. Mais impressionante é que mostrava conhecimentos profundos da sua família directa, mas também da sua família adquirida, ou seja, do meu lado. A morte sofrida do meu tio abalou-a, mas passou essa fase e começou uma nova vida, sozinha e regrada para si, com regras moldadas ao que sabia que gostava, e com moderação. E com o apoio da Maria, sua empregada para limpezas, para cozinhar e para tudo, que esteve sempre lá desde que me lembro e que para ela, e para nós, passou a pertencer à família.

Não cabe aqui contar episódios ou histórias que ela contou, pode ser que um dia tenha disponibilidade para isso. E tenho pena de não ter metade da memória dela, pois muitas coisas me hei-de esquecer entretanto. Mas a minha tia, mesmo que tivesse tido outras, foi a melhor tia que eu poderia ter tido.

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