aqui se narram as aventuras de um portuguesito que desde tenra idade é vítima de erros vários, mas com abertura para outros textos de reflexão e de intervenção cívica
quinta-feira, janeiro 30, 2014
INQUÉRITO PROJECTO LABELFISH
Gosto muito de ajudar em coisas positivas. E andam por aí muitos inquéritos cujo preenchimento pode fazer muita diferença. Este foi um dos que preenchi: (link para inquérito sobre informação nas etiquetas dos peixes comercializados)
terça-feira, janeiro 28, 2014
CONCURSO DE FOTOGRAFIA OU CONTO DO VIGÁRIO?
Uma empresa do Grupo Águas de Portugal, a SIMRIA, organizou um concurso de fotografia, mas dá um prémio tão fraquinho que não dá nem para aquecer. Mas pronto, sempre é algum dinheirinho para quem o vai receber. Mas fui ler o regulamento e não gostei nada. Então os senhores desta empresa, que já vivem bem à custa dos consumidores, pretendem que quem concorre, quer ganhe o prémio ou não, lhes ceda os direitos de publicarem as fotos sempre e onde quiserem? Será que eu li bem??? Estes senhores, pelo preço de um par de fotografias de qualidade, pagam os prémios aos vencedores e candidatam-se a ficar com um monte de boas fotografias, se calhar algumas mesmo de nível profissional. Para publicarem e se calhar até venderem posteriormente. E como se não bastasse, a SIMRIA ainda exige que os trabalhos a concurso sejam fotos impressas, candidatando-se assim esta empresa a juntar um bom lote de fotos para organizar uma exposição. Se a SIMRIA fosse uma associação ainda era capaz de aceitar, mas uma empresa? Ao que chegámos, ao que chegámos...
Para que possam conferir com os vossos próprios olhos, aqui está o link para o regulamento do concurso (clicar aqui)
Para que possam conferir com os vossos próprios olhos, aqui está o link para o regulamento do concurso (clicar aqui)
domingo, janeiro 26, 2014
PRIMEIRA JORNADA DE VOLUNTARIADO DE 2014
Ontem participei na Primeira Jornada de Voluntariado do Cabeço Santo. O terreno não era fácil, e eu não estava mesmo em forma, mas pronto, lá ajudei um bocadinho, e como levei a máquina fotográfica aproveitei para fazer umas fotos. Aqui está o link para o resumo da Jornada no blogue do Projecto Cabeço Santo (clicar aqui).
sexta-feira, janeiro 24, 2014
COM RESPEITO ÀS PALAVRAS
Este texto da Hélia Correia tenho mesmo que partilhar no Malfadado. Foi publicado pelo Público na semana passada, fica aqui o link para o texto todo (clicar aqui), mas tenho também que transcrever o texto, e quem conseguir chegar ao fim pode depois dizer-me se valeu a pena, ou não:
No rigor do latim, “indignado” é o que é tornado indigno. E eis, porém, que a palavra não se aceita a ela própria, empreende uma singular rebelião. Nega a humilhação que cai sobre ela. Vejam o quanto esta palavra é poderosa. Como deitou ao chão a sua origem. Como tomou nas mãos a sua vida
I
Não tenho competência para escrever sobre os eventos da realidade. Começa a falha pelo léxico: nem sei se o termo “evento” pode usar-se aqui. Não aprendi o bom vocabulário. E quanto à organização para o discurso, saber onde ele começa e como acaba, mais o que pelo meio se vai pondo, tão pouco faço a mais pequena ideia.
Eu, quando tenho de falar com alguém do género bancário ou fiscalista, aviso logo que sou das “Humanidades”, isto é, completamente ignorante. E peço caridade lexical, paciência: essas virtudes superiores. Nunca se fica muito esclarecido, mas trata-se de não incomodar. Um resto de amor-próprio determina que escapemos depressa do cenário. A humilhação chama pela maldade e eu resplandeço quando ocasionalmente alguém me diz uma palavra cara que posso decifrar rapidamente, emudecendo o interlocutor: “Sei o que significa, vem do grego”, disparo. E já não é uma conversa. É uma espécie mitigada de motim. O anedotário da revolução francesa regista que os motins não causam dano, são como uma pequena bebedeira. Não vale a pena perder tempo com motins. Não vale, aliás, a pena perder tempo. Estrebuchamos no vazio e alguém ri.
Parece, às vezes, que o cenário da ficção científica assentou no planeta actual: que criaturas mais ou menos humanóides nos conquistaram pelo interior e desapoderaram-nos de tudo, esperança, dignidade e alegria. Vimos tanto clamor nas praças gregas, cólera e fogo com nenhuma consequência. É como se entre os protestantes e o poder não houvesse trajecto, não houvesse natureza contínua. Duvido até que conseguissem procriar se a carne de uns e de outros se encontrasse. Respiram ares diferentes e não faz sentido algum que certa retórica da esquerda os desafie a que experimentem a pobreza, a que tentem viver com o salário que destinaram para os indefesos. Provavelmente viveriam bem porque não se alimentam como nós. Nem dormem como nós. Talvez nem morram. A verdade é que pouco pensamento nós conseguimos produzir sobre eles. A desumanidade é um mistério.
II
Vejo como anda gente a reclamar que se dê espaço à imaginação. É uma herança daquele Maio de 68 que a queria no poder e fez com isso uma bonita frase. Aliás, não houve muito muito mais que herdar. Mas enquanto os filósofos confiam nos benefícios do receituário, longe deles e do fumo dos Gauloises está à espera a serpente,latet anguis. Os Le Pen crescem sem filosofia. E a imaginação, que faz? Distrai. Melhor será dizer que nos engana. A alegoria cibernética que eu acima explorei trouxe um sorriso a este texto enquanto texto. E mais além não vai. Fornece uma dinâmica de jogo e entretém vagamente até cansar.
Sim, porque é de cansaço que se trata. De exaustão, no sentido de não termos nem uma gota que nos dessedente. Eu tenho o pensamento habituado à escrita metafórica e aqui estou a criar uma imagem enganosa. Se procurar um modo de dizer exacto, brutal, limpo, em que a palavra perca os seus ademanes de palácio, não acharei em “exaustão” o termo certo. Ninguém caminhou tanto que se sinta quase a morrer por desidratação. No “país de poetas”, caímos automaticamente numa coloração vocabular que muito raramente dá bons textos. De tão familiar, não a estranhamos. Até deixamos que trabalhe contra nós.
Por que aceitamos que se fale, por exemplo, nas “gorduras do Estado”? O Estado não tem metabolismo. Tem excesso de despesas, muitas delas em mordomias e em disparates.Um Estado não “emagrece”: corta nos gastos, e a escolha para os cortes tem critérios, e os critérios não se aplicam ao acaso. Aquilo que se chama ideologia, a moldura mental com que um comum destino se interpreta e planeia, decide a escolha. E escolhe-se cortar naquilo que é empecilho ao projecto, no que se quer extinguir ou, pelo menos, fazer partir para onde não se torne visível. Com a metáfora sobre o corpo obeso dá-se a volta ao assunto, transformando-o em algo humanizado e censurável. Fica fora do alcance da razão — nos labirintos do imaginário, naquilo que culturalmente assimilámos a ponto de esquecer — a simpatia pela causa. Dentro de nós, a ideia do descuido, da glutonice, da preguiça, enfim, do Sul, facilmente coabita com a ideia de punição e de dieta rigorosa. Tomar medidas para emagrecer é justo e bom. Se implica sacrifícios, são sacrifícios de ginásio, desses que conferem certa estética ao suor. Só um bulímico se recusa a entender e a estimar um regime que assegura saúde e elegância a quem o siga. Alcança longe, a manha da metáfora.
É necessário estarmos prevenidos contra os efeitos destas redacções. Há, no deslize para as figuras de compêndio, quase um tropismo, uma procura de consolo. Isso empobrece a agudeza do olhar. Sei que aquilo que eu disse muita vez — “Hoje o nosso inimigo não tem rosto”, para significar que é mais difícil reconhecê-lo, assinalá-lo e confrontá-lo, não é só uma frase retórica e inútil — partilha essa tendência viciante para a baixa literatura que nos dá a ilusão de intervir pela palavra. O que a expressão “sem rosto” cria é uma distância e, mais que uma distância, uma abstracção. Junta-se aos nossos medos ficcionais. Começámos com o Feiticeiro de Oz, vamos ao Orwell e a lição que retiramos é que, no fim, acaba tudo bem, os livros fecham-se e as crianças vão para a mesa. Bettelheim explicou que serventia têm estes entrechos. Um adulto já não beneficia com semelhante kit de aprendizagem. Corre o risco de hipnose. Vai pelo sonho. Estou convencida de que sonhar leva a que a musculatura se atrofie.
Temos que chegue de pequena literatura. Os governantes descobriram o filão e desataram a usar sem pejo os melhores truques da Academia. Metaforizam desalmadamente e é com muito sucesso que recorrem aos artifícios da prosopopeia, como novos Pessoas ou Camões. O que é o Bojador ao pé de um Estado pejado de gorduras, de mercados que são como velhos senhores que não tomaram a valeriana e atiram os criados escada abaixo nos maus humores da indigestão? Que mulher fabulosa é essa Europa a quem nós temos simplesmente de agradar sem compreender bem os seus caprichos? A Rainha de Copas da Alice, que tanto atormentou a minha infância porque gritava “Cortem-lhe a cabeça!” sem que se vislumbrasse uma razão, grita outra vez. Mudou apenas de idioma. Eles declaram: “Ela quer”, “ela ameaça”, “ela não anda nada satisfeita” e a cada um desses avisos nós levamos os dedos ao pescoço, com receio de que a cabeça já não esteja lá.
Quanto a enredos, tecem-nos com brilho, sobre modelos de novecentos. Por que tenho pensado ultimamente no Conde de Monte-Cristo quando leio os jornais? Porque vemos enredo semelhante, com o injustiçado que enriquece e acaba por ser dono do destino daqueles que o maltrataram. Edmond Dantès agora é angolano. Naturalmente, há um pedido de desculpas, uma genuflexão, talvez. The end?
Eles, os novéis cultores da ficção, vão-se referindo muito à “narrativa”. Por “narrativa” hão-de querer dizer o encadeamento temporal das acções. Mas vão mais longe ao conseguirem sugerir a malignidade da intriga, a vontade de drama que é aquilo que enche o texto de pathos e produz no leitor surtos de acidez moral. Conhecem bem o ofício: não se deixam manietar pelas questões da lógica, da verosimilhança ou da coerência. Mentem com toda a glória, porque não? Não é toda a grande obra uma mentira? É só preciso que quem mente minta bem. Minta na sua glória de poeta. Os governantes mentem com virtude.
E, no entanto, as pessoas não apenas clamam contra o prodigio criativo como até se declaram indignadas. Por causa da palavra “indignação” é que me pus a rabiscar o texto. Porque é uma palavra extraordinária. Deu a volta por dentro de si mesma para contrariar o seu significado. E tratou disso logo que nasceu, não houve aqui evolução semântica. No rigor do latim, que julgaríamos incontornável, vemos surgir uma palavra derivada pela prefixação do in negativo, que transforma um conceito no oposto. “Indignado” é o que é tornado indigno. E eis, porém, que a palavra não se aceita a ela própria, empreende uma singular rebelião. Nega a humilhação que cai sobre ela. O indignado, dizendo-se indignado, renega a sua condição, rebela-se. Vejam o quanto esta palavra é poderosa. Como deitou ao chão a sua origem. Como tomou nas mãos a sua vida.
Isto pode parecer prosa de exaltação, mas não passa de simples constatação linguística. Provavelmente precisamos disto. Enquanto os outros fazem literatura e a temática Dickens encontra no país uma oportunidade para se impor, tornemos nós ao simples, ao sensato, ao denso e intenso uso das palavras. Com o abuso do estilo, fomos deixando para trás a frescura das origens, a fisicalidade da palavra, ela que é parte do real e nele se inscreve. Sei que o caminho para a abstracção foi útil e foi bom porque nos fez aceder, por exemplo, aos conceitos. Mas, mutatis mutandis, assim como Hölderlin teve certo desígnio ao traduzir Antígona, também eu gostaria de repor a primeira energia da linguagem, recordando a nudez inicial. Falemos de “catarse” — que se aplica à gritaria das manifestações. Serve a catarse para energizar? Não serve. Uma catarse é má medida. Uma catarse era concretamente vómito de ressaca. O alívio de estômago a seguir a uma bebedeira. Era deitar para fora e ficar limpo. Transposta para a lição do teatro, assim durou, implicando sempre uma transformação. É isso o que se quer saindo à rua? Que a vivência nos lave do mal-estar? Falar não deve aliviar do mal. Pelo contrário, deve torná-lo inteligível e discutível. Torná-lo, a bem dizer, manipulável. Um material exterior e que, com esforço, consigamos dobrar. Nós precisamos tanto de catarses como de sonhos. Temos de levar outra intenção para as ruas.
O que é manifestar? É dar a ver. Dar a ver com as mãos. Não necessariamente mãos em festa — a etimologia é duvidosa. Provavelmente mãos conflituantes. Há com certeza uma finalidade para juntar num desfile a multidão, mas nós não somos já gente de ritos, não somos gente de re-ligação. Temos de inaugurar tudo novamente, a começar pelas frases de incentivo, pois as que ouvimos, de tão velhas, tão usadas, perderam o vigor. Estão transformadas em ladainhas de beatitude. Aliás, as mais das vezes não serviam como motores de mobilização, fracas de rima, rastejantes de sentido. Mas enquanto se caminhou a passo forte, enquanto, a velocidades várias, se manteve uma leitura histórica das coisas, uma certeza de alma potenciava aquele vocabulário esmaecido.
Se hoje as pessoas continuam a marchar é porque, à força de repetição, os sapatos estão enfeitiçados. Não é de dança, mas de espasmo, o movimento. O grito que invectiva já não faz estremecer o seu destinatário. O seu destinatário olha para “aquilo”, chama-lhe “aquilo”, e vai à sua vida. Mostra um grande talento para apoucar. Nós que talento revelamos? O da fé? O da brava teimosia? Repetimos os nossos argumentos… “até à náusea”: assim acaba a frase que herdámos da retórica latina. Não é possível refazer a língua? É, sim.
A nova poesia portuguesa já deitou as metáforas ao lixo. Está cheia de real e de um real sujeito a um olhar e a uma oficina que lhe conferem, numa mesma nota, estranheza e ressonância familiar. E há jovens cientistas muito atentos ao uso não utilitário da palavra, mais atentos, direi, do que muitos literatos. Eu tive o privilégio de falar, para uma sala de lotação superesgotada, sobre a pouca importância do enredo nos textos. Isso interessou-os extraordinariamente. Num mundo apoquentado por gravatas, eu vejo os meus amigos estudantes e doutorandos de Cultura Clássica, em não pequeno número, dispostos a cruzarem experiências e saberes como se tudo começasse agora e a Antiguidade nos tocasse. Se deles não vier o apetrecho que nos ensine a ver, e a ouvir, e a clamar com outro assomo de energia, se aplicarmos ao “hoje” o alfabeto que aplicámos ao “ontem”, nada lemos.
III
A nitidez que existia nas velhas ditaduras, os claramente vistos Bem e Mal, a ausência de dúvida nas causas, os perigos a que o corpo se arriscava, alimentavam plenamente a alma. Não era porque o inimigo tinha um rosto que a resistência se tornava articulada com a própria vida, como uma moral. Não tinham rosto os espiões da PIDE. Havia nomes, sim. Mas também temos nomes agora. A diferença é que o novo poder não ameaça directamente com prisão e com tortura. Por um reflexo quase biológico, a violência, o assassinato, o corte da estrutura vital cria mais vida. Era esse o princípio que levava uma revolução a triunfar.
O grande golpe é o que se dirige à alma. O meu sentido de “alma” é o que vem da anima latina, claro está, a instilação da vida que nos torna activos e pensantes. Qualquer torcionário aprende cedo que a alma não se tira com a faca mas com manobras de desorientação e de abatimento. O sopro anímico extingue-se depressa, bem mais depressa que o bater do coração, e sem sujar. “Desanimados”: eis a nossa condição. Bem mais difícil de remediar do que a de meros “oprimidos”, pela diferença que existe entre ter ânimo e não ter.
O ânimo requer o alerta dos sentidos. Não por caso, entre os soldados na batalha, alma era sinónimo de coragem. É de coragem que necessitamos, da coragem de ver e rejeitar. Não vamos pelo sonho. Assistimos, tempos atrás, a uma breve ardência, quando se encheram praças a Oriente — chamou-se a isso a Primavera Árabe — e o mundo pareceu fácil de abraçar. Víamos o real? Não, não o víamos. E, no entanto, ele move-se sem nós. Move-se sem parar. Quando acordamos, não temos senão cinza nos cabelos. Há um gesto possível? Há um gesto. Pelo menos, sacudi-la. Pelo menos, neutralizar a fábula, desmascarar os efabuladores. Ainda não conhecemos os seus rostos. Somente os rostos dos pequenos servos. Conhecemos, porém, os artifícios.
Por que usam a palavra “austeridade”? Porque há nela uma certa ressonância de coisa justa, de atitude respeitável. Alexandre Herculano foi austero. Sóbrio, frugal, um tanto seco na expressão, honesto, incorruptível — isso mesmo. A austeridade é um estádio a que se chega num percurso moral muito esforçado. É um modo de vida, uma atitude pela qual alguém opta, numa escolha inteiramente pessoal, quando recusa render-se ao luxuoso e ao supérfluo. Classificar alguém de “austero” significa que lhe atribuímos qualidades pouco usuais no cidadão vulgar. Ouvimos a palavra e logo o nosso dicionário subconsciente nos assinala que é para respeitar, acatar e temer. Se há uma “austeridade” que castiga é porque andámos na dissipação. Pressupõe-se que nós baixemos a cabeça sob o pecado que a palavra implica. Na verdade, não há “austeridade” aqui. Há alguém empurrado para a miséria. É um processo involuntário, imposto por uma força superior, neste sentido de que não pode desobedecer-se. E imposto, no sentido, também, da inocência. Estamos a pagar o quê, porquê? Em que momento é que prevaricámos? Foi a comprar mais um televisor, foi a escolhermos uma sala com lareira? Nós aprendemos, no devido tempo, que não podemos alegar ignorância da lei se a violámos, mas havia uma lei contra o conforto? Havia alguma lei que proibisse os filhos de viverem como tinham vivido os patrões dos seus pais? Devo dizer aqui que o consumismo me desperta uma viva repugnância, que admiro e sigo, porque quero, a vida “austera”. Mas, porque eu ando de transportes públicos, entenderei que a compra de um automóvel deve entregar o cidadão ao agiota? Estou a falar de pequeninas coisas, de minúsculas coisas que não chegam para lançar uma pessoa no inferno. O grande gasto, o gasto vil, onde se oculta?
Não, não nos pedem a “austeridade”. Eles exigem a pobreza e as suas consequências. Não, não fizemos mal. O que fizemos foi por fraqueza de desprevenidos ante a perversidade dos banqueiros. Não nos aliciavam com empréstimos? A bruxa má não estava a oferecer maçãs? Ficaremos agora deitados no caixão, narcolépticos, à espera de algum príncipe?
Vamos de história em história, adormentados.
Uma palavra envenenada estraga o mundo. Basta atentarmos em “democracia”, palavra vinda de tão longe, trabalhada, moldada, experimentada tanta vez. Parece ter sofrido uma anquilose, uma patologia da velhice que a transformou numa entidade rígida. E o conceito que lhe corresponde imobiliza, prende, como num propósito de teia. Diz-se: o eleitor votou em liberdade. E essa liberdade manietou-o. Mais não pode fazer do que esperar pelo próximo processo eleitoral. E censuramos os abstinentes que nos respondem que “não vale a pena” — quando os factos lhes dão toda a razão. Porque a democracia está disforme, ainda que insistamos em louvá-la.
Se olharmos sem a ilusão veremos quão irreconhecível se tornou. Veremos como finda o seu processo ali onde devia ter início. Melhor dizendo: finda o que, em rigor, é perene. A palavra “escrutínio” significa, para nós, simplesmente, a contagem dos votos. Mas escrutínio não é apenas isso: é vigilância. É observação continuada, é um exame de comportamentos. Por alguma razão os ingleses, experientes neste assunto, ainda aplicam a expressão under scrutiny aos governantes. O sustentáculo da democracia está na possibilidade e na probabilidade de cada cidadão vir a ser eleito e, uma vez eleito, prestar contas. Essa é a superioridade da República e a sua beleza. O voto é só um expediente técnico que o espaçamento temporal vicia.
Como se leva isso à prática não sei. Mas sei como se leva ao pensamento. E sei que o pensamento é o que faz levantar a cabeça. Estamos num tempo novo, rodeados por luz e escuridão para as quais não temos nem mapa nem farol. Temos modelos tão inspiradores como remotos. Certo é que a palavra é a obra do humano e a palavra não cessa de existir. Com palavras se fazem os fascismos, e Magnas Cartas e as Constituições. Cultivá-las, estudá-las, não nos salva talvez. Mas dignifica-nos. E se podemos aprender algo com o passado, antes de o perdermos completamente de vista, é que a dignidade se conquista e que a indignação a isso ajuda.
Não tenho competência para escrever sobre os eventos da realidade. Começa a falha pelo léxico: nem sei se o termo “evento” pode usar-se aqui. Não aprendi o bom vocabulário. E quanto à organização para o discurso, saber onde ele começa e como acaba, mais o que pelo meio se vai pondo, tão pouco faço a mais pequena ideia.
Eu, quando tenho de falar com alguém do género bancário ou fiscalista, aviso logo que sou das “Humanidades”, isto é, completamente ignorante. E peço caridade lexical, paciência: essas virtudes superiores. Nunca se fica muito esclarecido, mas trata-se de não incomodar. Um resto de amor-próprio determina que escapemos depressa do cenário. A humilhação chama pela maldade e eu resplandeço quando ocasionalmente alguém me diz uma palavra cara que posso decifrar rapidamente, emudecendo o interlocutor: “Sei o que significa, vem do grego”, disparo. E já não é uma conversa. É uma espécie mitigada de motim. O anedotário da revolução francesa regista que os motins não causam dano, são como uma pequena bebedeira. Não vale a pena perder tempo com motins. Não vale, aliás, a pena perder tempo. Estrebuchamos no vazio e alguém ri.
Parece, às vezes, que o cenário da ficção científica assentou no planeta actual: que criaturas mais ou menos humanóides nos conquistaram pelo interior e desapoderaram-nos de tudo, esperança, dignidade e alegria. Vimos tanto clamor nas praças gregas, cólera e fogo com nenhuma consequência. É como se entre os protestantes e o poder não houvesse trajecto, não houvesse natureza contínua. Duvido até que conseguissem procriar se a carne de uns e de outros se encontrasse. Respiram ares diferentes e não faz sentido algum que certa retórica da esquerda os desafie a que experimentem a pobreza, a que tentem viver com o salário que destinaram para os indefesos. Provavelmente viveriam bem porque não se alimentam como nós. Nem dormem como nós. Talvez nem morram. A verdade é que pouco pensamento nós conseguimos produzir sobre eles. A desumanidade é um mistério.
II
Vejo como anda gente a reclamar que se dê espaço à imaginação. É uma herança daquele Maio de 68 que a queria no poder e fez com isso uma bonita frase. Aliás, não houve muito muito mais que herdar. Mas enquanto os filósofos confiam nos benefícios do receituário, longe deles e do fumo dos Gauloises está à espera a serpente,latet anguis. Os Le Pen crescem sem filosofia. E a imaginação, que faz? Distrai. Melhor será dizer que nos engana. A alegoria cibernética que eu acima explorei trouxe um sorriso a este texto enquanto texto. E mais além não vai. Fornece uma dinâmica de jogo e entretém vagamente até cansar.
Sim, porque é de cansaço que se trata. De exaustão, no sentido de não termos nem uma gota que nos dessedente. Eu tenho o pensamento habituado à escrita metafórica e aqui estou a criar uma imagem enganosa. Se procurar um modo de dizer exacto, brutal, limpo, em que a palavra perca os seus ademanes de palácio, não acharei em “exaustão” o termo certo. Ninguém caminhou tanto que se sinta quase a morrer por desidratação. No “país de poetas”, caímos automaticamente numa coloração vocabular que muito raramente dá bons textos. De tão familiar, não a estranhamos. Até deixamos que trabalhe contra nós.
Por que aceitamos que se fale, por exemplo, nas “gorduras do Estado”? O Estado não tem metabolismo. Tem excesso de despesas, muitas delas em mordomias e em disparates.Um Estado não “emagrece”: corta nos gastos, e a escolha para os cortes tem critérios, e os critérios não se aplicam ao acaso. Aquilo que se chama ideologia, a moldura mental com que um comum destino se interpreta e planeia, decide a escolha. E escolhe-se cortar naquilo que é empecilho ao projecto, no que se quer extinguir ou, pelo menos, fazer partir para onde não se torne visível. Com a metáfora sobre o corpo obeso dá-se a volta ao assunto, transformando-o em algo humanizado e censurável. Fica fora do alcance da razão — nos labirintos do imaginário, naquilo que culturalmente assimilámos a ponto de esquecer — a simpatia pela causa. Dentro de nós, a ideia do descuido, da glutonice, da preguiça, enfim, do Sul, facilmente coabita com a ideia de punição e de dieta rigorosa. Tomar medidas para emagrecer é justo e bom. Se implica sacrifícios, são sacrifícios de ginásio, desses que conferem certa estética ao suor. Só um bulímico se recusa a entender e a estimar um regime que assegura saúde e elegância a quem o siga. Alcança longe, a manha da metáfora.
É necessário estarmos prevenidos contra os efeitos destas redacções. Há, no deslize para as figuras de compêndio, quase um tropismo, uma procura de consolo. Isso empobrece a agudeza do olhar. Sei que aquilo que eu disse muita vez — “Hoje o nosso inimigo não tem rosto”, para significar que é mais difícil reconhecê-lo, assinalá-lo e confrontá-lo, não é só uma frase retórica e inútil — partilha essa tendência viciante para a baixa literatura que nos dá a ilusão de intervir pela palavra. O que a expressão “sem rosto” cria é uma distância e, mais que uma distância, uma abstracção. Junta-se aos nossos medos ficcionais. Começámos com o Feiticeiro de Oz, vamos ao Orwell e a lição que retiramos é que, no fim, acaba tudo bem, os livros fecham-se e as crianças vão para a mesa. Bettelheim explicou que serventia têm estes entrechos. Um adulto já não beneficia com semelhante kit de aprendizagem. Corre o risco de hipnose. Vai pelo sonho. Estou convencida de que sonhar leva a que a musculatura se atrofie.
Temos que chegue de pequena literatura. Os governantes descobriram o filão e desataram a usar sem pejo os melhores truques da Academia. Metaforizam desalmadamente e é com muito sucesso que recorrem aos artifícios da prosopopeia, como novos Pessoas ou Camões. O que é o Bojador ao pé de um Estado pejado de gorduras, de mercados que são como velhos senhores que não tomaram a valeriana e atiram os criados escada abaixo nos maus humores da indigestão? Que mulher fabulosa é essa Europa a quem nós temos simplesmente de agradar sem compreender bem os seus caprichos? A Rainha de Copas da Alice, que tanto atormentou a minha infância porque gritava “Cortem-lhe a cabeça!” sem que se vislumbrasse uma razão, grita outra vez. Mudou apenas de idioma. Eles declaram: “Ela quer”, “ela ameaça”, “ela não anda nada satisfeita” e a cada um desses avisos nós levamos os dedos ao pescoço, com receio de que a cabeça já não esteja lá.
Quanto a enredos, tecem-nos com brilho, sobre modelos de novecentos. Por que tenho pensado ultimamente no Conde de Monte-Cristo quando leio os jornais? Porque vemos enredo semelhante, com o injustiçado que enriquece e acaba por ser dono do destino daqueles que o maltrataram. Edmond Dantès agora é angolano. Naturalmente, há um pedido de desculpas, uma genuflexão, talvez. The end?
Eles, os novéis cultores da ficção, vão-se referindo muito à “narrativa”. Por “narrativa” hão-de querer dizer o encadeamento temporal das acções. Mas vão mais longe ao conseguirem sugerir a malignidade da intriga, a vontade de drama que é aquilo que enche o texto de pathos e produz no leitor surtos de acidez moral. Conhecem bem o ofício: não se deixam manietar pelas questões da lógica, da verosimilhança ou da coerência. Mentem com toda a glória, porque não? Não é toda a grande obra uma mentira? É só preciso que quem mente minta bem. Minta na sua glória de poeta. Os governantes mentem com virtude.
E, no entanto, as pessoas não apenas clamam contra o prodigio criativo como até se declaram indignadas. Por causa da palavra “indignação” é que me pus a rabiscar o texto. Porque é uma palavra extraordinária. Deu a volta por dentro de si mesma para contrariar o seu significado. E tratou disso logo que nasceu, não houve aqui evolução semântica. No rigor do latim, que julgaríamos incontornável, vemos surgir uma palavra derivada pela prefixação do in negativo, que transforma um conceito no oposto. “Indignado” é o que é tornado indigno. E eis, porém, que a palavra não se aceita a ela própria, empreende uma singular rebelião. Nega a humilhação que cai sobre ela. O indignado, dizendo-se indignado, renega a sua condição, rebela-se. Vejam o quanto esta palavra é poderosa. Como deitou ao chão a sua origem. Como tomou nas mãos a sua vida.
Isto pode parecer prosa de exaltação, mas não passa de simples constatação linguística. Provavelmente precisamos disto. Enquanto os outros fazem literatura e a temática Dickens encontra no país uma oportunidade para se impor, tornemos nós ao simples, ao sensato, ao denso e intenso uso das palavras. Com o abuso do estilo, fomos deixando para trás a frescura das origens, a fisicalidade da palavra, ela que é parte do real e nele se inscreve. Sei que o caminho para a abstracção foi útil e foi bom porque nos fez aceder, por exemplo, aos conceitos. Mas, mutatis mutandis, assim como Hölderlin teve certo desígnio ao traduzir Antígona, também eu gostaria de repor a primeira energia da linguagem, recordando a nudez inicial. Falemos de “catarse” — que se aplica à gritaria das manifestações. Serve a catarse para energizar? Não serve. Uma catarse é má medida. Uma catarse era concretamente vómito de ressaca. O alívio de estômago a seguir a uma bebedeira. Era deitar para fora e ficar limpo. Transposta para a lição do teatro, assim durou, implicando sempre uma transformação. É isso o que se quer saindo à rua? Que a vivência nos lave do mal-estar? Falar não deve aliviar do mal. Pelo contrário, deve torná-lo inteligível e discutível. Torná-lo, a bem dizer, manipulável. Um material exterior e que, com esforço, consigamos dobrar. Nós precisamos tanto de catarses como de sonhos. Temos de levar outra intenção para as ruas.
O que é manifestar? É dar a ver. Dar a ver com as mãos. Não necessariamente mãos em festa — a etimologia é duvidosa. Provavelmente mãos conflituantes. Há com certeza uma finalidade para juntar num desfile a multidão, mas nós não somos já gente de ritos, não somos gente de re-ligação. Temos de inaugurar tudo novamente, a começar pelas frases de incentivo, pois as que ouvimos, de tão velhas, tão usadas, perderam o vigor. Estão transformadas em ladainhas de beatitude. Aliás, as mais das vezes não serviam como motores de mobilização, fracas de rima, rastejantes de sentido. Mas enquanto se caminhou a passo forte, enquanto, a velocidades várias, se manteve uma leitura histórica das coisas, uma certeza de alma potenciava aquele vocabulário esmaecido.
Se hoje as pessoas continuam a marchar é porque, à força de repetição, os sapatos estão enfeitiçados. Não é de dança, mas de espasmo, o movimento. O grito que invectiva já não faz estremecer o seu destinatário. O seu destinatário olha para “aquilo”, chama-lhe “aquilo”, e vai à sua vida. Mostra um grande talento para apoucar. Nós que talento revelamos? O da fé? O da brava teimosia? Repetimos os nossos argumentos… “até à náusea”: assim acaba a frase que herdámos da retórica latina. Não é possível refazer a língua? É, sim.
A nova poesia portuguesa já deitou as metáforas ao lixo. Está cheia de real e de um real sujeito a um olhar e a uma oficina que lhe conferem, numa mesma nota, estranheza e ressonância familiar. E há jovens cientistas muito atentos ao uso não utilitário da palavra, mais atentos, direi, do que muitos literatos. Eu tive o privilégio de falar, para uma sala de lotação superesgotada, sobre a pouca importância do enredo nos textos. Isso interessou-os extraordinariamente. Num mundo apoquentado por gravatas, eu vejo os meus amigos estudantes e doutorandos de Cultura Clássica, em não pequeno número, dispostos a cruzarem experiências e saberes como se tudo começasse agora e a Antiguidade nos tocasse. Se deles não vier o apetrecho que nos ensine a ver, e a ouvir, e a clamar com outro assomo de energia, se aplicarmos ao “hoje” o alfabeto que aplicámos ao “ontem”, nada lemos.
III
A nitidez que existia nas velhas ditaduras, os claramente vistos Bem e Mal, a ausência de dúvida nas causas, os perigos a que o corpo se arriscava, alimentavam plenamente a alma. Não era porque o inimigo tinha um rosto que a resistência se tornava articulada com a própria vida, como uma moral. Não tinham rosto os espiões da PIDE. Havia nomes, sim. Mas também temos nomes agora. A diferença é que o novo poder não ameaça directamente com prisão e com tortura. Por um reflexo quase biológico, a violência, o assassinato, o corte da estrutura vital cria mais vida. Era esse o princípio que levava uma revolução a triunfar.
O grande golpe é o que se dirige à alma. O meu sentido de “alma” é o que vem da anima latina, claro está, a instilação da vida que nos torna activos e pensantes. Qualquer torcionário aprende cedo que a alma não se tira com a faca mas com manobras de desorientação e de abatimento. O sopro anímico extingue-se depressa, bem mais depressa que o bater do coração, e sem sujar. “Desanimados”: eis a nossa condição. Bem mais difícil de remediar do que a de meros “oprimidos”, pela diferença que existe entre ter ânimo e não ter.
O ânimo requer o alerta dos sentidos. Não por caso, entre os soldados na batalha, alma era sinónimo de coragem. É de coragem que necessitamos, da coragem de ver e rejeitar. Não vamos pelo sonho. Assistimos, tempos atrás, a uma breve ardência, quando se encheram praças a Oriente — chamou-se a isso a Primavera Árabe — e o mundo pareceu fácil de abraçar. Víamos o real? Não, não o víamos. E, no entanto, ele move-se sem nós. Move-se sem parar. Quando acordamos, não temos senão cinza nos cabelos. Há um gesto possível? Há um gesto. Pelo menos, sacudi-la. Pelo menos, neutralizar a fábula, desmascarar os efabuladores. Ainda não conhecemos os seus rostos. Somente os rostos dos pequenos servos. Conhecemos, porém, os artifícios.
Por que usam a palavra “austeridade”? Porque há nela uma certa ressonância de coisa justa, de atitude respeitável. Alexandre Herculano foi austero. Sóbrio, frugal, um tanto seco na expressão, honesto, incorruptível — isso mesmo. A austeridade é um estádio a que se chega num percurso moral muito esforçado. É um modo de vida, uma atitude pela qual alguém opta, numa escolha inteiramente pessoal, quando recusa render-se ao luxuoso e ao supérfluo. Classificar alguém de “austero” significa que lhe atribuímos qualidades pouco usuais no cidadão vulgar. Ouvimos a palavra e logo o nosso dicionário subconsciente nos assinala que é para respeitar, acatar e temer. Se há uma “austeridade” que castiga é porque andámos na dissipação. Pressupõe-se que nós baixemos a cabeça sob o pecado que a palavra implica. Na verdade, não há “austeridade” aqui. Há alguém empurrado para a miséria. É um processo involuntário, imposto por uma força superior, neste sentido de que não pode desobedecer-se. E imposto, no sentido, também, da inocência. Estamos a pagar o quê, porquê? Em que momento é que prevaricámos? Foi a comprar mais um televisor, foi a escolhermos uma sala com lareira? Nós aprendemos, no devido tempo, que não podemos alegar ignorância da lei se a violámos, mas havia uma lei contra o conforto? Havia alguma lei que proibisse os filhos de viverem como tinham vivido os patrões dos seus pais? Devo dizer aqui que o consumismo me desperta uma viva repugnância, que admiro e sigo, porque quero, a vida “austera”. Mas, porque eu ando de transportes públicos, entenderei que a compra de um automóvel deve entregar o cidadão ao agiota? Estou a falar de pequeninas coisas, de minúsculas coisas que não chegam para lançar uma pessoa no inferno. O grande gasto, o gasto vil, onde se oculta?
Não, não nos pedem a “austeridade”. Eles exigem a pobreza e as suas consequências. Não, não fizemos mal. O que fizemos foi por fraqueza de desprevenidos ante a perversidade dos banqueiros. Não nos aliciavam com empréstimos? A bruxa má não estava a oferecer maçãs? Ficaremos agora deitados no caixão, narcolépticos, à espera de algum príncipe?
Vamos de história em história, adormentados.
Uma palavra envenenada estraga o mundo. Basta atentarmos em “democracia”, palavra vinda de tão longe, trabalhada, moldada, experimentada tanta vez. Parece ter sofrido uma anquilose, uma patologia da velhice que a transformou numa entidade rígida. E o conceito que lhe corresponde imobiliza, prende, como num propósito de teia. Diz-se: o eleitor votou em liberdade. E essa liberdade manietou-o. Mais não pode fazer do que esperar pelo próximo processo eleitoral. E censuramos os abstinentes que nos respondem que “não vale a pena” — quando os factos lhes dão toda a razão. Porque a democracia está disforme, ainda que insistamos em louvá-la.
Se olharmos sem a ilusão veremos quão irreconhecível se tornou. Veremos como finda o seu processo ali onde devia ter início. Melhor dizendo: finda o que, em rigor, é perene. A palavra “escrutínio” significa, para nós, simplesmente, a contagem dos votos. Mas escrutínio não é apenas isso: é vigilância. É observação continuada, é um exame de comportamentos. Por alguma razão os ingleses, experientes neste assunto, ainda aplicam a expressão under scrutiny aos governantes. O sustentáculo da democracia está na possibilidade e na probabilidade de cada cidadão vir a ser eleito e, uma vez eleito, prestar contas. Essa é a superioridade da República e a sua beleza. O voto é só um expediente técnico que o espaçamento temporal vicia.
Como se leva isso à prática não sei. Mas sei como se leva ao pensamento. E sei que o pensamento é o que faz levantar a cabeça. Estamos num tempo novo, rodeados por luz e escuridão para as quais não temos nem mapa nem farol. Temos modelos tão inspiradores como remotos. Certo é que a palavra é a obra do humano e a palavra não cessa de existir. Com palavras se fazem os fascismos, e Magnas Cartas e as Constituições. Cultivá-las, estudá-las, não nos salva talvez. Mas dignifica-nos. E se podemos aprender algo com o passado, antes de o perdermos completamente de vista, é que a dignidade se conquista e que a indignação a isso ajuda.
quarta-feira, janeiro 22, 2014
PASSEIO AO FIM DA TARDE NA EREIRA
Por estes dias andei na Ereira, Montemor-o-Velho, onde vivem os pais da Zeza. Num fim de tarde fomos dar um passeio e adorámos ouvir as estórias da Ti Nazaré.
domingo, janeiro 19, 2014
MADRILENHO (PARA RIR)
A qualidade na televisão anda pelas ruas da amargura...
Estava eu uma destas noites a ver as notícias, só se falava da Bola de Ouro e do Cristiano Ronaldo. Eis que dão uma reportagem juntando alguns comentários de pessoas que estiveram na cerimónia organizada pela FIFA, uma dessas pessoas era o dono do Real Madrid. Dizia ele que o prémio tinha deixado contente o Cristiano, a família do Cristiano, os portugueses e os madridistas.
E agora vejam a tradução, o que a SIC colocou nas legendas do noticiário (sic): "...Cristiano, os portugueses e os madrilenhos." Os MADRILENHOS???????? De onde é que vêm estes tradutores para o castellano? Espanhóis não são, porque não confundiriam as coisas. Portugueses também não, porque não escreveriam madrilenos com "nh".
Mas, para mim, apanhar com estas coisas assim é revoltante, não podendo partir a televisão, levantei-me e desliguei-a.
Admito que muita gente não saiba o que são os madridistas, por isso aqui fica a definição (com link para a página de onde a roubei):
madridista
quinta-feira, janeiro 16, 2014
CORÁLIA
Ele há coisas que custam mesmo a mudar... mas também é verdade que não passaram ainda dez anos desde que tive algumas experiências muito desagradáveis no Hospital. E na verdade tenho esperança que os serviços públicos que tratam as pessoas possam mudar para melhor. A noite passada voltámos ao Hospital por causa da mãe da Zé, pouco passava de 24 horas desde que tinha tido alta. Visivelmente a alta foi decidida sem a situação da D. Corália estar resolvida, pois assim que deixou a medicação hospitalar começou com muitas dores, que passaram para dores insuportáveis, mesmo medicada com analgésicos normais. E logo pensei que o ideal seria voltar para o serviço de onde tinha saído, mas às 3 da manhã, depois de umas horas nas urgências, não descobriram a origem da dor e toca de mandá-la de volta a casa.
Mas o episódio mais chocante, e por isso escrevo também aqui, foi um encontro imediato com uma personagem que dirige um dos serviços naquele hospital. Foi esta manhã e tentei explicar-lhe a minha opinião, sobre o facto de a D. Corália ter entrado no Hospital há mais de um mês com um problema grave numa perna, que desde logo apontava para uma amputação, e ter saído de lá com uma amputação dessa perna, uma operação à coluna por causa de uma hérnia, uma paralisia da outra perna (que perdeu também a sensibilidade), com um descontrolo das necessidades fisiológicas (que obriga ao uso de fraldas e a uma sonda), e em cima disto uma reamputação da perna que deu origem ao internamento. E, em minha opinião, deviam ter visto o problema de uma forma mais geral para o estado de saúde, não só da paciente, como da família que a vai acolher após o internamento. E isso é uma coisa que pouco interessa quando o doente está internado. Mas em vez de dizer algum argumento contrário, alguma justificação, a personagem diz-me que a família não interessa nada! Foi o sinal para lhe virar as costas, dizendo que não me interessava falar com alguém assim.
Mas o mais irritante foi ele, depois desta conversa de corredor, ter ido dizer à Zé que eu só estava interessado em ver-me livre dos trabalhos, deixando a D. Corália no Hospital só para não a ter em casa a dar trabalho...
Mas o episódio mais chocante, e por isso escrevo também aqui, foi um encontro imediato com uma personagem que dirige um dos serviços naquele hospital. Foi esta manhã e tentei explicar-lhe a minha opinião, sobre o facto de a D. Corália ter entrado no Hospital há mais de um mês com um problema grave numa perna, que desde logo apontava para uma amputação, e ter saído de lá com uma amputação dessa perna, uma operação à coluna por causa de uma hérnia, uma paralisia da outra perna (que perdeu também a sensibilidade), com um descontrolo das necessidades fisiológicas (que obriga ao uso de fraldas e a uma sonda), e em cima disto uma reamputação da perna que deu origem ao internamento. E, em minha opinião, deviam ter visto o problema de uma forma mais geral para o estado de saúde, não só da paciente, como da família que a vai acolher após o internamento. E isso é uma coisa que pouco interessa quando o doente está internado. Mas em vez de dizer algum argumento contrário, alguma justificação, a personagem diz-me que a família não interessa nada! Foi o sinal para lhe virar as costas, dizendo que não me interessava falar com alguém assim.
Mas o mais irritante foi ele, depois desta conversa de corredor, ter ido dizer à Zé que eu só estava interessado em ver-me livre dos trabalhos, deixando a D. Corália no Hospital só para não a ter em casa a dar trabalho...
quarta-feira, janeiro 15, 2014
ROBIN DOS BOSQUES DA MEALHADA
Afinal não foi nada do que correu nas notícias, o dono do restaurante da Mealhada não cobrou a mais aos congressistas do CDS para vingar o roubo de que é alvo por parte do governo. Mas não foi nada disto que aconteceu, pode ter havido uma pequena discrepância de uma dose, mas o protesto dos congressistas foi tão forte que o dono do restaurante apenas desabafou: “Já não basta o que me roubam, ainda querem que lhes pague o almoço?”. Ora isto é bem diferente de dizer: "Se o governo me rouba, então eu também vos cobro 4 doses a mais!", que foi como a história correu na comunicação social. Se assim fosse era um protesto e o dono do restaurante, apesar de servir leitão, subia na minha consideração. Sendo um desabafo, é apenas mais um desabafo...
(link para a notícia, para os leitores que estejam desenquadrados)
(link para a notícia, para os leitores que estejam desenquadrados)
terça-feira, janeiro 14, 2014
ALMADA, ENTRE O RIO E O MAR
Eu seleccionei para ver em hq (high quality - alta qualidade) e de facto vale a pena. Para quem gosta de documentários de coisas sobre a natureza, este eu aconselho. E se for a um português ainda mais aconselho, pois é sempre com orgulho que vemos coisas bem feitas, e feitas por portugueses, e que realçam as nossas riquezas. Nossas e de todo o mundo, pelo menos é assim que eu encaro as coisas que vejo sobre o património natural, nem que seja do outro lado do mundo, penso sempre que as coisas que nos mostram também me pertencem. E por isso acho importante defendê-las.
segunda-feira, janeiro 13, 2014
DIVIDIR PARA REINAR
É assim que funciona desde os reis, há muitas centenas de anos, e os resultados têm sido satisfatórios para quem aplica este sistema. Agora na democracia parece que funciona ainda melhor, as pessoas andam entretidas nas suas vidas e só protestam quando o mal lhes bate à porta. Lembrei-me desta reflexão por causa de um texto dedicado a quem rouba o que é de outros. Ladrões (link para blogue "Do tempo da outra senhora"), assim se chama o texto. Mas a verdade é que se todos os que se sentem enganados tivessem a solidariedade de outras pessoas, os protesto nas ruas teriam outra dimensão. Mas o que vemos? Protestos dos professores, protestos dos trabalhadores, protestos dos reformados, protestos promovidos por uma central sindical, protestos até dos polícias. Falta a solidariedade de vir para a rua protestar pelo simples facto de vermos que há coisas que provocam situações de sofrimento a outras pessoas e não nos virmos só queixar quando as coisas estão mal para o nosso lado. Um dos exemplos melhores é a questão do aumento do horário para os funcionários públicos, que aconteceu no ano passado. A justificação é termos melhores serviços públicos? Não, a justificação é poupar nos salários, não contratar mais gente. Isso ajuda na qualidade de vida das pessoas que trabalham nestes serviços, na qualidade de vida familiar? Nada, só agrava. Mas para dividir as coisas e não ter um protesto em massa dos funcionários públicos, a lei foi feita só para alguns sectores. E quem se manifestou em defesa dos afectados? Os afectados e mais ninguém! Daqui a um par de anos, depois de se ter institucionalizado o horário mais alargado, e por uma questão de justiça e convergência, o horário alargado será imposto a todos os sectores da administração pública. E nessa altura quem vai protestar? Os sectores que irão ser afectados e mais ninguém. E por isso a nossa sociedade está como está. Dividida e reinada a bel-prazer por pessoas ali colocadas pela malta eleitora que ainda acredita no menino Jesus e estórias de reis e princesas, ajudados pelo autêntico exército de quem não vai votar. Mas que depois ainda se queixa de que são todos iguais...
sábado, janeiro 11, 2014
QUANDO O CLIENTELISMO FUNCIONA
Hoje chegou ao meu mail uma novidade: o reitor da Universidade de Aveiro entrou de mãos dadas com o presidente da CIRE nas instalações da Comissão de Coordenação da Região Centro para assinarem um contrato com o QREN (Quadro de apoio financeiro comunitário a 90%). Mas para projectos a terem início ainda em 2013. É verdade que estávamos ainda em Dezembro de 2013, mas alguém acredita numa coisa destas? Quem foi o representante do estado (que somos todos nós) que assinou esse contrato, concordando com um projecto megalómano, que envolve uma Parceria Público-Privada e que nunca ninguém explicou como vai ser o financiamento para o seu funcionamento no futuro?... dizem que a Troika se vai embora em Maio e já andam aí a embandeirar em arco, mas pelos vistos não aprendemos nada porque estes negócios são mais do mesmo! Recordo aqui um artigo do Norberto Pires, publicado em 2013 (clicar aqui neste link) (conheci-o numa sessão organizada pela Quercus Aveiro, precisamente sobre a destruição da Coutada, para instalar ali umas poucas construções e parques de estacionamento, tudo com financiamento a 90%).
quarta-feira, janeiro 08, 2014
O MEU PROCESSO
Ontem fui a Castelo Branco com a minha advogada, por causa do meu velhinho processo em tribunal. Agora está no Tribunal Administrativo, porque eu peço o pagamento de verbas que nunca me foram pagas, devido à perseguição que me foi movida pelo Ministério da Agricultura. E peço a justa indemnização por ter sido levado à falência e a anos consecutivos de desemprego. Ontem foi estabelecido o Despacho saneador e dia 9 de Maio será o julgamento, com audição de testemunhas. Para explicar à Juíza porque é que eu tenho razão, para além de testemunhos de gente habituada a esquivar-se à verdade (são as testemunhas apresentadas pelo IFA(DA)P), teremos na audiência os testemunhos da Palmira Gonçalves, agricultora e dirigente associativa (ARABBI), do Samuel Infante, ecologista e dirigente associativo (QUERCUS) e do Ti Ferreira, agricultor e grande pessoa, que na sua simplicidade consegue ser extraordinário.
Sobre este processo já aqui escrevi neste blog muitas coisas. Fiz uma pesquisa e lá descobri este texto, de 2006 (!!!): link para o texto Ordem ou Desordem? (clicar aqui)
Sobre este processo já aqui escrevi neste blog muitas coisas. Fiz uma pesquisa e lá descobri este texto, de 2006 (!!!): link para o texto Ordem ou Desordem? (clicar aqui)
terça-feira, janeiro 07, 2014
PROFESSORES
Neste caso é um professor de matemática, trabalha no Brasil, e fala com paixão sobre o ensino. Numa altura em que o ensino público continua na mesma degradação que teve início há mais de dez anos, através de sucessivos governos que olham para a educação como uma despesa, em vez de um investimento, e com a cultura actual de uma sociedade acelerada e superficial, achei por bem partilhar aqui este vídeozinho do youtube. É também uma homenagem ao meu pai, que depois de sair da indústria do cimento, onde trabalhou muitos anos, se dedicou ao ensino. Quando dava aulas de matemática, noutros tempos, é verdade, havia alunos que quando não tinham alguma aula, por falta do professor, iam pedir para assistir às aulas dele. Mas é também uma reflexão minha, custa-me a entender como é que os pais dos alunos não se mexem na defesa da escola pública. Porque há bons professores que precisam de ser defendidos de uma imagem que é espalhada, de que na escola pública os professores não são bons. É verdade que existem maus professores, mas a maioria são os bons professores.
Para quem gostou deste videozinho, fica aqui o link para um outro video (também no youtube) do mesmo Gustavo Reis, numa explicação mais detalhada e mais recente (clicar aqui).
Para quem gostou deste videozinho, fica aqui o link para um outro video (também no youtube) do mesmo Gustavo Reis, numa explicação mais detalhada e mais recente (clicar aqui).
segunda-feira, janeiro 06, 2014
CORES AOS MOLHOS
Mais um blogue de amigos adicionado aqui ao lado. Chamei-lhe Corzinhas, fica aqui o convite para lerem sempre, ou de vez em quando...
domingo, janeiro 05, 2014
ANO NOVO, VIDA NOVA
Tomei uma decisão: este ano, até ao meu aniversário, vou reduzir o consumo de açúcares. Comecei com os bolos, a partir de agora acabaram-se os bolos. Depois acabam-se os chocolates, as bolachas industriais, os gelados e finalmente as sobremesas de colher. Está decidido! Já comi coisas boas suficientes para mais de cem anos de vida, tudo muito concentrado nos anos que já vivi. Agora é hora de viver melhor!
sábado, janeiro 04, 2014
MORRA O SIM, MORRA! PIM!
Sem mais comentários, começamos 2014 indignados com a perspectiva de termos sempre mais do mesmo. Há sempre alguém que diz NÃO. Em 7 minutos.
quinta-feira, janeiro 02, 2014
AURORA - URSO POLAR EM LONDRES
No final de 2013 falei sobre o balanço do Greenpeace. Não resisto em deixar aqui o link para uma página do movimento, que contém um filme sobre a aventura de construir uma enorme marioneta, um urso polar. Está em inglês, mas pronto, não tive tempo para traduzir... para quem gosta de ver teatro de rua e costuma ir ao Imaginarius não precisa de tradução!
Link para o site Greenpeace (walking with Aurora) - clicar aqui
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